Racialização do Estado e do conflito

Brasil teve três escravidões. Limitar compensações como cotas e terras apenas a negros é mais oportunismo que política social

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Por José de Souza Martins
Atualização:

Há no Brasil um fenômeno politicamente novo que é o quilombismo, a ideologia racial que se materializa na prática política da fértil descoberta, em todas as partes, de quilombos de negros fugidos da escravidão, abolida em 1888. Os quilombolas teriam permanecido perdidos e em silêncio, em diferentes recantos do País, por mais de um século. Até serem descobertos e alertados de que eram o que supostamente não sabiam ser, pois uma disposição transitória da Constituição de 1988 dizia que poderiam sê-lo. Um decreto do presidente Lula, de 2003, regulamentando-a, confirma que, para tanto, basta que a pessoa se declare negra e quilombola para que negra seja e quilombola também. Mobilizados mais pelos outros, por setores da classe média politicamente organizada e militante, negra ou não, do que por si mesmos, os afrodescendentes com raízes nos redutos da resistência negra podem apresentar-se ao balcão do governo federal para reivindicar direitos sobre as terras de seus quilombos, que lhes foram reconhecidos na lei maior. O quilombismo faz parte da nova família de ismos políticos da reação conservadora, justa, mas retrógrada, surgida nos últimos anos ao abrigo de concepções supostamente de esquerda. É também o caso do cotismo, o regime de cotas para afrodescendentes nas universidades, que, mais que uma reivindicação de direito, é reivindicação ideológica da classe média militante, mesmo negra. Uma classe social que já não precisa de terra para trabalhar e nem sabe como fazê-lo. Parece lucidez política e generosidade. Mas o fantasma de um novo tipo de capitão-do-mato pode estar se apossando do corpo e da alma dos missionários dessa modalidade de redenção das vítimas do cativeiro, que dele escaparam. É ele um despistado em relação ao que deveria ser a práxis política conseqüente, que emancipasse todos e não só alguns, que não se restringisse à propriedade e à renda territorial, mas a superasse na efetiva equivalência do direito de todos a todos os direitos nascidos do progresso material e da civilização. Enclaves fundiários e de privilégios, de quem quer que seja, não levam à concretização dos ideais igualitários pelos quais lutam os que carecem radicalmente desse direito fundamental. Aliás, essa é uma justa queixa das populações pobres, não só negras, em relação ao direito vigente, teoricamente igualitário, mas geralmente desigual e iníquo na prática dos nossos tribunais. Pedem uma compensação invocando o direito à mesma iniqüidade. A potencial transformação de todo negro em quilombola, para, em nome dessa condição, reivindicar a terra de trabalho, é uma aberração desnecessária em política social e uma mutilação descabida na política de reforma agrária. A questão agrária, para negros e para não-negros, é a mesma e se resolve com uma política universalista de reforma, isto é, terra para todos que dela precisem e se qualifiquem para nela trabalhar diretamente. Essa perspectiva moderna e progressista da questão dispensaria o governo Lula da equivocada opção que fez, para supostamente ser justo com os afrodescendentes, por uma reforma agrária para negros e outra para os não-negros. Tivemos no Brasil três escravidões, que alcançaram três diferentes grupos: a escravidão dos índios administrados e seus descendentes, que cessou formalmente, mas não de fato, em 1757, de que descende boa parte dos caipiras e sertanejos; a escravidão negra, que cessou em 1888; e a servidão por dívida de imigrantes estrangeiros, brancos e amarelos, que se tornaram colonos nas fazendas de café com o fim da escravidão negra, confinados e cerceados em sua liberdade de ir e vir, como os negros da senzala. Dessas escravidões surgiu uma escravidão residual, que já foi numerosa até os anos 70 do século 20 e ainda persiste. Portanto, limitar a concessão de direitos corporativos compensatórios, como os das cotas e de terras, unicamente aos afrodescendentes é mais oportunismo do que política social. A legalização da desigualdade social, por meio da concessão de privilégios a um único grupo étnico ou racial, vem se fazendo, inconstitucionalmente, desde a Constituição de 1988. No governo Sarney se materializou na criação da Fundação Palmares, no Ministério da Cultura, como agência de fomento da cultura e da identidade dos afrodescendentes. Decorrente do necessário reconhecimento das lesões causadas pela escravidão à população negra, não cuidaram o legislador e o governo, porém, de reconhecer direitos iguais a outras vítimas remanescentes do cativeiro formal e informal, como as que mencionei. Se tal reconhecimento tivesse ocorrido, nem por isso seriam justas e historicamente apropriadas as medidas legais que estendessem os privilégios a todas as vítimas de algum tipo de escravidão. Só uma política de desenvolvimento social igualitária faria justiça a todos que dela carecem, sem ameaçar a igualdade democrática de todos. Um dos fatores dessa distorção é o de que a luta pelos direitos sociais no Brasil contemporâneo nasceu e se disseminou a partir da matriz da luta de classes. Mesmo com o declínio recente da vitalidade política da classe operária brasileira, a cultura do conflito se transformou num filtro binário que reduz a seus termos limitados todas as reivindicações, mesmo onde o conflito não é mais do que mera disputa de interesses ou reivindicação de privilégios, como neste caso. Até o crime organizado, a partir do surgimento do Comando Vermelho, assimilou esse modelo para legitimar a criminalidade. A leitura da questão racial na perspectiva imprópria e equivocada da luta de classes promove a etnização ou a racialização do conflito social e do Estado, o que empobrece, ao mesmo tempo, tanto as demandas próprias das classes sociais, quando reivindicam como tais, quanto as demandas próprias dos afrodescendentes. Sobretudo, fragiliza e até anula o sujeito fundamental da sociedade democrática, que é o cidadão, que se sobrepõe a todas as identidades particulares, como as raciais. DOMINGO, 12 DE AGOSTO Um Piauí em reivindicação Para o ex-ministro Raul Jungmann, do Desenvolv. Agrário, o reconhecimento das terras quilombolas exigirá "um orçamento só para assentar sem-terra e quilombolas". 3.524 comunidades reivindicam 25 mi de hectares, o equivalente à área do Estado do Piauí.

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