Radicada em Portugal, Andréa Zamorano retrata opressão no País

Em 'A Casa das Rosas', escritora brasileira demonstra que a opressão pode estar nos mais sutis gestos

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Por Faustino da Rocha Rodrigues
Atualização:

Para enxergar melhor, às vezes é preciso distância. Não sei dizer se A Casa das Rosas é um livro sobre o Brasil. Sei apenas que a autora, Andréa Zamorano, brasileira, de tanto viver longe do País, demonstrou acuidade visual. Sendo fiel à história, escreveu um livro atualíssimo.

A escritora brasileira Andréa Zamorano 

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Zamorano, falando desde Lisboa, tornou-se observadora privilegiada. Encontrou os óculos que, na face, procuramos por toda a casa. Percebeu a dimensão da opressão não notada por quem vive cotidianamente com ela, a ponto de não se dar conta de sua existência, da condição de oprimido. 

A Casa das Rosas foi considerado pela revista TimeOut, de Lisboa, o melhor romance de 2015 – publicado agora no Brasil, pela Tinta Negra. É a história de Eulália. Os fatos acompanham os movimentos pelas Diretas Já, em 1984, quando a personagem completa 18 anos. Em certa medida, sua saga se confunde com a ânsia popular pela democratização do Brasil.

Criada sob a severa “proteção” paterna, Eulália de repente foge do pai. Até então, sua personalidade era pacata, tranquila, infensa a acontecimentos externos, além dos muros de sua casa, em São Paulo. A docilidade de seu comportamento pode ser vista, por exemplo, na maneira como se relaciona com a empregada, Cesária. Entre as duas, há desmesurado afeto, a ponto de Cesária sequer perceber sua condição de empregada.

Já no princípio do século 20 Gilberto Freyre sublinhava o suposto traço “afetivo” do brasileiro. Discursava sobre a harmonia das raças em uma sociedade escravocrata. Disso, subentende-se a mitigação dos conflitos sociais, gerando uma “paz” singular a reinar no Brasil, relativizando o peso da escravidão em nossa história. A opressão é minimizada pela afetividade. 

Aos poucos percebemos como A Casa das Rosas não é ingênuo. Parte de sua atualidade está na capacidade de a autora conseguir abordar sutilmente um tema como a opressão. Mobiliza fatos históricos, a relação patrão-empregado e, como dito, a questão dos afetos. Estes deixam aquela característica positiva a pressupor a paz entre os opostos, revelando-se, na verdade, como o ethos propício para que ocorra a naturalização da opressão. No princípio, Eulália não percebe seu opressor. Tampouco se percebe como oprimida. É necessário um choque. Diante de um tabu a ser rompido, foge. 

E perde-se na multidão. Vaga por São Paulo, em meio ao povo. Na vida real seu afeto é redimensionado, colocado em novo patamar. Toma consciência da necessária distância de seu opressor. Irresoluta, não fraqueja. 

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Interessante como Zamorano manipula os fatos ao jogar com recursos da narrativa. Nos capítulos centrados em Eulália, predominam a primeira pessoa. É apresentado ao leitor uma percepção extremamente afetiva do mundo por meio da exposição de suas impressões pessoais. 

Neste momento tem-se uma dimensão do olhar do oprimido quanto ao mundo. O leitor é levado a perceber como, a despeito da sufocante condição, é possível extrair sentido para as coisas ao redor, que, graças aos afetos, contribuem para justificar internamente o opressor. É como se Eulália, por meio da expressão em primeira pessoa, naturalizasse a opressão sofrida. 

Entretanto, progressivamente, vemos Zamorano dar destaque ao outro extremo, o do opressor, narrado em terceira pessoa. Desse modo, expõe o conservadorismo do personagem. Por exemplo: o povo nas ruas pelas Diretas Já, aos olhos de Virgílio, pai de Eulália, é comparado a ratos a se apertarem nas passagens do esgoto. Os acontecimentos ao redor são filtrados por sua consciência conservadora. 

Aliás, é interessante como o Brasil desponta pelo olhar do conservadorismo autoritário. É por este prisma que o leitor tem contato com grande parte dos fatos históricos. O mesmo recurso de terceira pessoa é utilizado nos capítulos a tratarem um outro personagem, o delegado Dias. Descrito como oprimido, tem como opressor a corrupção de sua corporação em plena ditadura. E sua marcante honestidade se faz visível como reação, revelando um homem que desconfia de tudo e de todos, chegando a agir de modo violento. Estará inconscientemente tornando-se um opressor?

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Zamorano sugere que a relação oprimido-opressor pode ser vista na política conservadora a investir contra a manifestação popular. Porém, ela é igualmente notável na insistente tentativa de apropriação dos recursos públicos, na justiça brasileira e até mesmo na relação entre empregados e patrões. Logo, sua raiz é mais profunda, remetendo à formação individual, chegando ao interior das residências, como no caso da conservadora e tradicional família de Eulália. 

Ao ler A Casa das Rosas, tive a sensação de que a opressão está logo ali, tão próxima, que não a enxergamos. Ela não vem apenas na forma de armas ou palavras de ordem contra o mais frágil – não está somente no monopólio legal da violência e nas falas em nome da tradição. Ela está onde menos se espera, podendo mascarar-se até mesmo em uma rosa ofertada. 

*Faustino da Rocha Rodrigues é jornalista, doutor em ciências sociais pela UFJF e pesquisador da obra de Antônio Vieira

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Capa do livro 'A Casa das Rosas', de Andréa Zamorano 

A Casa das Rosas Autora: Andréa ZamoranoEditora: Tinta Negra 172 páginas R$ 42

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