Raúl e o 'mel do poder'

Ao afastar 'fidelistas' de seu gabinete, o mais pragmático dos Castros revela sua feição ambiciosa

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Por Daniel P. Erikson e Paul J. Wander
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Praticamente sob todos os aspectos, o primeiro ano de Raúl Castro na presidência de Cuba foi, no melhor dos casos, sem brilho. Embora seu irmão Fidel sempre tenha sido alguém difícil de ser igualado, depois de 49 anos sob o mesmo líder a vasta maioria da população cubana estava pronta para uma mudança. Poucos achavam que Raúl empreenderia grandes reformas econômicas ou políticas, mas pelo menos havia a esperança de que o governo se tornaria menos ideológico e mais direcionado a resultados. No seu discurso de posse como presidente, em 24 de fevereiro de 2008, Raúl suscitou especulações de todo lado ao prometer que as primeiras mudanças ocorreriam já nas "próximas semanas". Foi a primeira vez que o povo cubano teve conhecimento de um cronograma para a implementação de reformas, calculado em semanas, e não em meses ou anos. A primeira medida de Raúl Castro, para cumprir sua promessa e atender às expectativas, foi em março do ano passado. Citando a "maior oferta de energia elétrica", o governo suspendeu dispositivo que proibia os cubanos comuns de adquirir produtos eletrônicos como DVD players, computadores, televisores de 24 polegadas e aparelhos de micro-ondas - produtos que até então só podiam ser comprados legalmente por estrangeiros e empresas. Logo depois, foi legalizado o uso privado de celulares e anulado um outro ato, odiado, que proibia os cubanos de frequentar os grandes hotéis de turismo do país. Novas reformas de mercado foram implementadas no setor agrícola, o valor das aposentadorias aumentou e se introduziram incentivos para recompensar a produtividade do trabalhador nas empresas estatais. Contudo, no último trimestre do ano passado, o ritmo das mudanças diminuiu drasticamente. Cuba foi atingida por três fortes furacões, que devastaram grandes áreas agrícolas, o que, combinado com a crise econômica global, forçou o país a reduzir brutalmente suas projeções de crescimento. Ao mesmo tempo, a saúde precária de Fidel, com 82 anos, melhorou gradativamente, e os seus frequentes pronunciamentos escritos sobre assuntos domésticos e internacionais muitas vezes confundiam as pessoas sobre quem, exatamente, estava no cargo. Entretanto, uma série de eventos políticos nos Estados Unidos pegou os cubanos de surpresa e desprevenidos. A chegada de Barack Obama à presidência dos EUA deixou o establishment político cubano aturdido, forçando seus líderes a reconsiderar velhas ideias sobre a sociedade e a política americanas. Além disso, enquanto figuras políticas como John McCain e Hillary Clinton se opunham totalmente a qualquer compromisso com Cuba, os apelos de Obama no sentido de um diálogo e de expandir as viagens para esse país eram uma coisa nova - apesar de ele também ter apoiado o embargo. Após a posse de Obama, os cubanos presenciaram uma explosão de discussões em Washington sobre o futuro da política americana para Cuba, incluindo relatórios de alto nível da Brookings Institution, Inter-american Dialogue e de poderosos grupos de exilados cubanos, todos insistindo num maior engajamento com a ilha. Agora que não existe mais a administração Bush, o Congresso sentiu-se encorajado a adotar medidas tendo em vista reduzir a miríade de restrições limitando uma interação comercial e pessoal com Cuba. O republicano Richard Lugar, que lidera a Comissão de Relações Exteriores do Senado, apresentou relatório pedindo um reexame da política americana em relação a Cuba, e revisões dessa política foram incluídas numa emenda da lei orçamentária de 2008 - energicamente contestada por políticos favoráveis ao embargo, como o senador de New Jersey, Bob Menendez. Por outro lado, com a Cúpula das Américas marcada para o mês que vem, em Trinidad e Tobago, o governo Obama vai ter que enfrentar a realidade de que não pode abrir uma nova era nas relações dos EUA com os latino-americanos sem mostrar sinais de que está disposto a reavaliar sua política para Cuba. Na América Latina, países como o Brasil - que há muito tempo descartava esse conflito cubano-americano como se fosse assunto periférico - começam a fazer uma campanha aberta para intermediar uma solução para esse impasse bilateral. Depois de deixar praticamente de lado a questão cubana durante grande parte do seu mandato, no ano passado o presidente Lula viajou duas vezes a Cuba, hospedou uma reunião de cúpula latino-americana em Brasília com a finalidade de convidar Raúl Castro e começou a pressionar abertamente os EUA para mudarem sua política. Com o mandato expirando em 2010, alguns analistas acham que Lula esteja em busca de um legado, intermediando uma trégua entre Estados Unidos e Cuba, uma proeza que poderia colocá-lo em posição de ganhar um Prêmio Nobel da Paz. Diante do desempenho sem brilho, internamente, e um ambiente político externo cada vez mais complicado, Raúl Castro fez a maior aposta de sua jovem presidência na semana passada, ao promover uma grande reformulação do gabinete. Embora tenha anunciado importantes decisões envolvendo a consolidação dos principais ministérios e a instalação de novos tecnocratas em posições-chave, claramente a medida mais ousada foi o afastamento sumário do vice-presidente Carlos Lage e do ministro do Exterior, Felipe Pérez Roque, dois dos mais jovens e mais destacados membros da hierarquia cubana, que mantinham suas posições havia mais de uma década. Fidel Castro mais tarde acusou os dois homens de terem sido seduzidos pelo "mel do poder" e ambos apresentaram uma carta lacônica de renúncia de todos os demais postos remanescentes no governo cubano. Foi uma queda espetacularmente rápida de dois homens que por muito tempo ocuparam postos do mais alto escalão do Partido Comunista, mas pôs fim a qualquer dúvida, mostrando que hoje Raúl Castro está a cargo da equipe encarregada da política externa e doméstica de Cuba. Raúl Castro é considerado o mais pragmático e realista dos irmãos Castros, mas sua corajosa aposta para reformular o governo cubano revela que ele próprio tem grandes ambições. Como Lula está com viagem marcada para Washington, na próxima semana, os eventos registrados em Cuba com certeza estarão na sua agenda. Mas, independentemente das ambições de Lula e Obama com respeito a Cuba, eles não devem esquecer que muitos líderes estrangeiros viram suas esperanças virar pó quando deram de frente com as duras realidades do regime Castro. * Daniel P. Erikson é do instituto Inter-American Dialogue e autor de The Cuba Wars: Fidel Castro, the United States and the Next Revolution (As Guerras de Cuba: Fidel Castro, os EUA e a Próxima Revolução); Paul Wander é assistente de programa no Inter-American Dialogue SEGUNDA, 2 DE MARÇO Reformas na Ilha Menos de uma semana depois de completar um ano de sua eleição pela Assembleia Nacional, Raúl Castro reorganiza seu gabinete. Saem dez funcionários do alto escalão, quase todos líderes políticos fortes, mais jovens e fiéis a seu irmão Fidel.

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