Reflexões de um veterano das lentes

'O campo se abriu à minha frente ao mirar a realidade vista através do vidro. Uma cena a ser reportada, mas que se desdobra para o sonho, o delírio, o cômico e o dramático'

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Por Ivan Marsiglia
Atualização:

Só Paulo Rubens Fonseca sabe quanto lhe custou sua visão de mundo. Não apenas no garimpo destas imagens, produzidas ao longo de quatro décadas e consolidadas no livro Reflexos, que acaba de sair pela editora M4 Marketing. Para capturá-las com a lente de 50 mm de sua Nikon F100 - necessária para que todos os elementos, distantes e próximos, estivessem em foco -, Fonseca tinha de se aproximar perigosamente do objeto de seu olhar. Por causa disso, levou alguns tapas no equipamento, brigou na rua e chegou a ser detido pela polícia em certa ocasião. Mas não foi apenas o preço desses "acidentes de trabalho" que o fotógrafo paulistano de 70 anos pagou. Na década de 1970, a ditadura militar brasileira impunha seu período de mais brutal repressão. Por sua atuação como militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), o jovem fotógrafo, já radicado no Rio, foi preso e torturado no 1º Batalhão da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. É dessa época, em 1974, a foto que deu início à série (no alto da página)."Aquela primeira imagem tinha caráter político, mas também poético", explica Fonseca: "Um brasileiro comum, taxista, de aliança no dedo, lendo uma notícia sobre o sombrio governo Geisel, ao mesmo tempo que o para-brisa reflete a Rua Nascimento Silva, em Ipanema, um dos lugares mais idílicos do Rio. Tudo isso com a bandeirola do taxímetro marcando 'Livre'. Eram duas realidades ali". Os 160 cliques do livro, feitos com filme preto e branco em 11 cidades do mundo, são o grito de independência de Fonseca em relação à ditadura da foto documental. "Quis escapar do mero registro dos fatos com que ganhei a vida por tantos anos e produzir uma espécie de crônica da urbanidade, retratar a perda de identidade do ser humano no caos das metrópoles", diz o profissional que fez carreira em 1968 na revista Manchete e passou pelas redações do Correio da Manhã, Veja e O Globo.Na apresentação que escreveu para Reflexos, Ferreira Gullar atesta: "Pode-se dizer, sem exagero, que ele faz a antifoto, já que contraria a natureza mesma da fotografia: usa-a para violentar a realidade banal em que todos vivemos". Os dois artistas se conheceram quando Fonseca foi escalado para fazer o retrato de capa do LP Antologia Poética - Ferreira Gullar, lançado pela Som Livre em 1979. A foto, com um Gullar de longas madeixas e queixo apoiado nas duas mãos entrelaçadas, a princípio não agradou ao poeta maranhense, que a achou "delicada demais". Mas bastou uma conversa com o fotógrafo para que o autor de Resmungos (2006) mudasse de opinião. Ficaram amigos. Desde 2000, Paulo Rubens Fonseca dedica-se em tempo integral à carreira de professor de fotojornalismo na PUC-Rio. Da interlocução com os alunos - e a despeito de seu casamento quase monogâmico com a fotografia analógica - veio seu entusiasmo pelo mundo digital. "Claro que tem muito lixo, muito selfie, salsicha clicada no botequim. Mas essa meninada cresceu produzindo imagens. Dá banho em termos de estética." E cita a célebre foto da bicicleta de Pelé feita por Alberto Ferreira, Prêmio Esso em 1963: um clique quase milagroso nas condições da época, diz, "mas uma foto tecnicamente ruim".Nas aulas, o professor também dá testemunho das mudanças a que assistiu no País nos últimos 40 anos. Horrorizou-se com o depoimento de seu xará, o coronel reformado Paulo Malhães, na Comissão Nacional da Verdade, jactando-se de ter torturado, matado e esquartejado presos políticos nos anos 1970 "e as Forças Armadas fingindo até hoje que nada aconteceu". Se diz indignado com o vírus do abuso que parece contaminar a todos os que chegam ao poder - "o PT jogou na lata do lixo a oportunidade de ser novidade política" -, mas considera que o Brasil deu um salto de qualidade de 2002 para cá. "Aos poucos estamos passando a limpo esta nação", dispara o veterano das lentes.EXPOSIÇÃO. O fotógrafo abre neste domingo, dia 13, a mostra com imagens do livro Reflexos no Centro Cultural Justiça Federal (CCJF), na Av. Rio Branco, 241, Centro, Rio de Janeiro, tel. (21) 3261 2550. Até dia 20/4.    

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