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Remota e poeirenta

A ideia de que a morte do ultradireitista Eugene Terreblanche acenderá o pavio de uma guerra racial na África do Sul é idiotice, analisa escritor britânico

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Por Redação
Atualização:

 

O jornalista e escritor inglês John Carlin não acredita em fantasmas. Sobretudo se eles aparecerem no país que julga conhecer bem: a África do Sul. Lá Carlin chefiou o escritório do jornal londrino The Independent por seis anos cruciais da história, de 1989 a 1995. Acompanhou de perto a libertação de Nelson Mandela, sua pacífica ascensão ao poder por meio do voto democrático e o fim do apartheid, o regime dos brancos que legalmente confinava a maioria negra numa vida de pária. E para lá ele volta frequentemente no que chama de "missões jornalísticas", entre as quais as pesquisas e entrevistas que fez para seu livro de maior sucesso, Conquistando o Inimigo, recentemente transformado no filme Invictus por Clint Eastwood.

 

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Pois na semana passada, enquanto Carlin trabalhava em Barcelona, de onde "vende palavras para jornais, livros, rádios, TVs e discursos", como ele mesmo diz, fantasmas foram vistos mapa-múndi abaixo. Mais precisamente no vilarejo de Ventersdorp, a 100 km de Johannesburgo. Negros e brancos se aglomeravam diante do fórum para acompanhar o julgamento dos dois homens negros acusados de matar a pauladas o ultradireitista e supremacista branco Eugene Terreblanche, líder do Movimento de Resistência Africânder, o AWB. Abre parêntese: africânderes são os brancos descendentes dos colonizadores holandeses que comandaram a política, a cultura e as Forças Armadas do país sob o apartheid. Fecha parêntese.

 

A polícia falou em crime comum: Terreblanche teria sido atacado porque não pagou o salário de 300 rands (R$ 72) dos dois suspeitos, que trabalhavam na fazenda dele. Mas isso não impediu que algumas assombrações do apartheid viessem atemorizar a nação arco-íris imaginada por Mandela. Na frente do fórum, a atmosfera faiscante obrigou a polícia a separar brancos e negros com uma cerca de arame farpado. Brancos que juravam vingança empunhavam sua antiga bandeira azul, laranja e branca. Negros saudavam os acusados com gritos de "heróis! heróis!". E noutras partes ouvia-se de novo a velha canção negra de resistência que dizia "kill de boer" (mate o bôer). Bôer é um africânder fazendeiro. Terreblanche era um bôer.

 

Para Carlin, porém, o problema é localizado, circunscrito a uma cidade "remota e poeirenta". Jamais pode ser encarado como uma alma penada do mal a pairar sobre a democracia sul-africana, uma das mais fortes do mundo na opinião dele. "É completamente idiota sugerir que o homicídio desse velho palhaço imbecil possa desencadear uma guerra racial. Fazia 15 anos que Terreblanche não tinha nenhuma relevância nacional", disse Carlin. A seguir, trechos de sua entrevista ao Aliás.

 

Palhaço sem graça

 

"Surpreendentemente, a morte de Eugene Terreblanche foi causada por motivos trabalhistas - embora, ao longo dos anos, com suas ideias, ele tenha incentivado arduamente as pessoas a matá-lo por razões raciais. Saberemos da verdade no julgamento dos assassinos. Mas é completamente idiota sugerir que o homicídio desse velho palhaço imbecil possa desencadear uma guerra racial. A África do Sul é uma das democracias mais fortes do mundo hoje. O crime foi um problema local, ocorrido numa cidade remota e poeirenta. Fazia 15 anos que Terreblanche não tinha nenhuma relevância nacional. Sua organização, o AWB, tem atualmente 10 seguidores, 20 no máximo. É um grupo anacrônico, irrelevante, que nunca foi sério nem mesmo quando tinha mais apoio. Muitos sul-africanos, quando souberam da morte de Terreblanche, disseram: ‘Mas eu achava que ele já estivesse morto...’

 

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Nação arco-íris

 

"Existe paraíso na Terra? Você acredita em utopias? Eu não. O fato é que, derrubado o apartheid, a África do Sul tem feito as coisas tão bem quanto se poderia esperar dela. A vida dos negros melhorou muito economicamente. Existe uma nova classe média negra, o que era inimaginável 20 anos atrás. Há até uma elite negra formada por pessoas que foram proeminentes na luta contra o apartheid e hoje levam uma vida luxuosa. São acionistas ou proprietários de grandes empresas de software. Apesar de tudo, a maioria dos negros está na mesma situação de antes, só que agora eles possuem uma commodity à qual é difícil atribuir um valor: dignidade. Os brancos não são mais os mestres e senhores, tanto que criar uma nação exclusivamente africânder, como imaginava Terreblanche, é uma ideia morta hoje. Os brancos se comportam com mais humildade e respeito e lidam bem com a ascensão social dos negros. Ela os faz se sentir menos culpados pelos privilégios que tiveram no passado.

 

A volta do que não foi

 

"Cantar ‘kill de boer’ neste momento é algo estúpido, até mais do que era no passado. Eles deveriam mudar a letra da canção para ‘kiss de boer’ (beije o bôer). Não estou negando a existência de tensão racial na África do Sul. Ela existe, em maior ou menor grau, em todos os países racialmente diversificados. Eu acho que há menos tensão racial na África do Sul do que nos Estados Unidos (onde morei), porém mais do que no Reino Unido (onde nasci). Negros e brancos sul-africanos não se misturam como amigos muito próximos, mas eles se misturam nos espaços públicos de uma maneira que não acontecia. Vá a um shopping center, a um McDonald’s, a um café e você verá todos juntos. Enfim, negros e brancos tratam-se hoje com cordialidade e respeito. Há exceções, mas essa é a norma. E eu digo isso como um homem branco que viajou para cada canto da África do Sul nos últimos 12 meses.

 

Mandela eterno

 

"Nelson Mandela é um homem idoso (ele tem 91 anos). Raramente aparece e não fala mais em público. Mas representa para os sul-africanos a melhor coisa de seu país, e consequentemente a melhor coisa da humanidade. Faz tempo que ele sumiu da cena política sul-africana, por isso acho que sua morte não mudará nada politicamente. Mandela não é Fidel Castro. Ele escolheu ficar no poder por cinco anos e sair. Você me pede para compará-lo a Jacob Zuma (o atual presidente da África do Sul). Mandela é um dos grandes líderes da história. Zuma é só outro político.

 

Copa do Mundo

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"Ouço dizer que membros do AWB recomendaram que os países desistissem de ir à África do Sul para disputar a Copa do Mundo. Pois eu tenho um grupo de 20 amigos que acreditam que o mundo deveria boicotar o mundial de 2014 no Brasil por causa das mortes cometidas pela polícia. O que você acha? Isso o assusta?

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