Réquiem da sutileza

Numa análise pesada, ensaio sobre Brasília ignora o enigmático encantamento da capital

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Por Norma Côrtes
Atualização:
História. Para crítica, vale resgatar as querelas da construção da cidade Foto: UESLEI MARCELINO/REUTERS

Benjamin Moser emplacou mais um sucesso. Seu último ensaio sobre a cidade de Brasília, Cemitério da Esperança, alcançou as graças da recepção crítica. Moderníssimo e ultracorreto, o livro consiste num ensaio de leitura ligeira, vendido a preço módico, cuja renda se destina aos movimentos urbanos do Recife. Além do engajamento altruísta, o livro é promissor. Porque é fruto tardio, ainda alimentado pelos estudos biográficos sobre Clarice Lispector.

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Considerando tais antecedentes, tudo levaria a crer que mantivesse a mesma delicadeza da romancista. Após visitar a cidade, ela declarou: “Se eu dissesse que Brasília é bonita veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia veem nisso uma acusação. Mas a minha insônia não é bonita nem feia, minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. É ponto e vírgula. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil: eles ergueram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério”.

O problema é que, desconhecendo esse enigmático encantamento, Cemitério da Esperança converte-se num réquiem da sutileza interpretativa. Pesada, sua análise começa com um postulado a priori e, numa cascata de alusões vinculativas, segue fazendo menção à figura de Hitler; evoca o ufanismo de Afonso Celso; depois, registra o exótico otimismo brasileiro; repete os argumentos de Paulo Prado e a tristeza dos trópicos; adiante, insiste em recordar a especialidade médica de JK, chamando-o de “o urologista de Belo Horizonte”; para, finalmente, desaguar nas inclinações stalinistas de Niemeyer. Enfim, trata-se de uma peça condenatória que, numa barafunda anacrônica, rejeita Brasília em razão de sua faraônica artificialidade.

O foco da interpretação não incide sobre o fato de a cidade atual ter enterrado as utopias de seus arquitetos. Com a pretensão da visada histórica, o ensaio encontra na longa duração as razões culturais para o insucesso da capital. Inscreve as esperanças da geração bossa nova numa tradição intelectual que, supostamente e desde sempre, possuiria as marcas do triunfalismo ufanista, do esteticismo autoritário ou da exclusão social. Tais críticas repetem o conservadorismo de Gilberto Freyre, que acusou o traçado urbanístico e a arquitetura da nova capital de postiços. A seu ver, a imagem de Brasília traía o país real, pois suas formas não mimetizavam o histórico desalinho das cidades coloniais.

Brasília contrariava a sensibilidade do sociólogo modernista. E outros modernistas de 1922 também se opuseram à ruptura com o compromisso figurativo das vanguardas abstracionistas. Mas, foram justamente as ousadias não representacionais da nova cidade que encantaram a geração bossa nova. Os juízos de Clarice expressam tal percepção. Afinal, tanto ultrapassam a oposição entre o belo e a fealdade quanto desconhecem os dilemas que opõem o genuíno ao espúrio, o passado ao futuro, o útil ao desnecessário, etc. Repelindo ambos os antagonismos, ela preferiu o assombro diante da força poética contida nos gestos de criação de uma nova experiência citadina.

Em consonância, Roland Corbisier, filósofo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), também declarou: “Não bastaria interiorizar a capital. O que nos parece de maior significação e importância é a concepção e a realização de Brasília como obra de arte, como expressão autêntica da nova cultura brasileira. O plano urbanístico e a realização arquitetônica constituem, pela audácia e pela originalidade, a prova eloquente de que não estamos mais condenados a traduzir, imitar, ou copiar apenas, mas já nos tornamos capazes de afirmar livremente nosso gênio, nossa força criadora”.

É importante resgatar as querelas da construção de Brasília. Do contrário, teríamos uma perspectiva tendenciosa. Essa é a fragilidade do livro de Benjamin Moser. Lamentavelmente, ele preferiu ignorar o debate intelectual que antagonizou múltiplas visões de mundo. E, ao fazê-lo, nos apresenta tão somente uma caricatura das ambições que embalaram os criadores da nova capital da República. 

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Ademais, é anacronismo sugerir continuidade entre Por que me Ufano de meu País (1900) e o ímpeto futural compartilhado pela geração bossa nova. Sob cada um desses horizontes de futuro se encontram ânimos, percepções de realidade e prognósticos bem distintos. E, a rigor, não há nenhuma afinidade entre a jactância ufanista de Afonso Celso e a ousadia poética das obras de Niemeyer, Guimarães Rosa, Lygia Clark, Lúcio Costa, Guerreiro Ramos, Campos de Carvalho, Vinicius de Moraes, Álvaro Vieira Pinto, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, etc.

Engajada em torno de esperanças democráticas e igualitárias, essa geração inventou linguagens inéditas, que instalaram ex nihilo novas experiências de ser e estar no mundo. É verdade que entre o feijão e o sonho eles preferiram os encantos do último. Mas se os atuais juízos históricos não querem só reclamar as vantagens do primeiro, amesquinhando as ousadias estéticas ou societais deles, convém não enterrar as esperanças da geração bossa.

NORMA CÔRTES É HISTORIADORA E PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

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