Reunião de contos mostra diferença de Tolstoi contista e romancista

Enquanto a prosa longa de Tolstoi pinta panoramas amplos da sociedade russa, seus contos demonstram preocupações sociais e existenciais

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Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualização:

Os Contos Completos (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo), de Liev Tolstoi (1828-1910), nos trazem a oportunidade de pensar sobre as consonâncias e dissonâncias entre o romancista e contista. 

O escritor Liev Tolstoi, cujos 'Contos Completos' estão sendo lançados pela Companhia das Letras 

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Guerra e Paz (1863-1869) e Anna Kariênina (1873-1877) consagraram Tolstoi como um romancista épico que lograva apresentar amplos panoramas da sociedade russa de sua época – dos grandes movimentos históricos às transformações que abalavam os valores e costumes tradicionais.

Guerra e Paz tem como mote narrativo a campanha empreendida pelo exército e pelo povo russos para rechaçar a invasão do país pelas tropas de Napoleão Bonaparte, a partir de 1812. Não se trata de um romance linear em que a trama se desdobra, de forma escorreita, do início ao fim. Flutuando como um caleidoscópio, o narrador tolstoiano (I) sobrevoa os campos de batalha e aterrissa rente à agonia dos soldados aleijados e eviscerados; (II) discorre, como um ensaísta a sustar o espaço e o tempo narrativos, sobre o papel (e as aporias) dos grandes líderes na história; (III) acompanha a mescla tempestuosa entre guerra e paz em meio às famílias aristocráticas Rostov e Bolkonski, de modo a desvelar, sob o véu de nobreza e religiosidade, o preconceito de classe que acossava servos e soldados – ou, pior, servos como soldados.

Com um dinamismo imagético que lembra as sucessões vertiginosas de uma câmera cinematográfica, Guerra e Paz nos leva ao turbilhão mesmo do campo de batalha: “De todos os lados, tanto adiante como atrás, captava o ouvido um imenso barulho: as rodas rangiam; os caixões de munição solavancavam; os cavalos batiam os cascos; os chicotes estalavam; os soldados, os oficiais e seus ordenanças urravam injúrias ou ordens de encorajamento. Os soldados, chapinhando na lama até os joelhos, levantavam as peças e os furgões; os chicotes golpeavam, os cavalos escorregavam, os tirantes se partiam, os urros desgarravam os peitos. Os oficiais encarregados de regulamentar a marcha iam e vinham entre as carroças; seus comandos se perdiam no tumulto geral e via-se pelos seus rostos que desesperavam de deter a derrocada.”

Anna Kariênina, por sua vez, é um retrato vívido da obsolescência que atingia o coração da aristocracia russa em meio às profundas transformações pelas quais o país ia passando em seu amálgama de feudalismo e capitalismo, tradicionalismo rural e pulsão citadina, reação e revolução. Como hoje sabemos, o privilégio e a angústia aristocráticos só chegariam ao fim com a Bastilha russa que irrompeu em 1917, com as revoluções de fevereiro, que destronou a dinastia Romanov, e outubro, que levou ao poder os bolcheviques capitaneados por Vladimir Lenin.

É bem verdade que se pode atribuir um laivo de profundo moralismo tolstoiano no fim fatídico (o suicídio) que acomete a adúltera Anna Kariênina. Vale frisar que a relação de Tolstoi com o casamento era tudo menos tranquila – em 1862, o autor se casou com Sônia Andréievna Behrs, de quem permaneceu marido até o fim de sua vida, a despeito das muitas idas e vindas e conflitos encarniçados relacionados a questões financeiras e sexuais (em seu período de maior rigor cristão, Tolstoi chegou a defender a mais plena castidade, em meio ao próprio matrimônio, como forma de purgação e elevação espiritual). Ainda assim, a angústia de Anna Kariênina nos pode mostrar que sua subjetividade indômita não cabia no enquadramento limitado, limitante e hipócrita das convenções que as castravam. Mulher para além de seu tempo, os conflitos de Anna apontam não para problemas propriamente subjetivos, mas para a impossibilidade de uma época em lidar com a pulsão feminina por liberdade em seus mais diversos matizes. 

Certa vez, o escritor argentino Julio Cortázar sentenciou que, “se o romancista pode ganhar uma luta por pontos, o contista precisa vencer o pugilista oponente (o leitor) por nocaute”. Eis um bom mote para cotejarmos o caráter épico e panorâmico do romancista Tolstoi com a expressividade cirúrgica e mais objetiva do contista. 

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Os Contos Completos nos apresentam tanto as memórias do período em que Tolstoi se engajou no exército russo em meio às campanhas de expansão czarista pelo Cáucaso, em meados do século 19 – mencionemos, entre tais narrativas, Sebastopol em Maio, Sebastopol em Agosto de 1855 e Das Memórias do Cáucaso – quanto os contos populares e os livros russos de leituras que se voltavam para alfabetizar os camponeses, com cuja formação Tolstoi sempre se preocupou. É nesse sentido que o tradutor Rubens Figueiredo afirma que, “por toda a vida, o escritor dedicou uma atenção incomum a populações, classes e grupos sociais em situação subalterna, que se encontravam em diferentes formas de conflito com a ordem dominante. Assim, figuram com destaque ciganos, cossacos, vários povos do Cáucaso, sectários religiosos, camponeses, servos, criados, soldados, criminosos, presos, mulheres, velhos, crianças.” 

Diante da miríade de narrativas que compõem os Contos Completos, centremos nossa análise em um conto que realiza um amálgama entre as preocupações sociais e os questionamentos existenciais de Tolstoi: Onde Está o Amor, Está Deus.

Diligente e honesto, o sapateiro Martin Adveitch vivia num porão, num quarto com uma janela, e, assim, ficava espreitando os calçados dos transeuntes que recorriam a seus trabalhos. Ainda que não lhe faltassem fregueses, Adveitch tinha dificuldade em manter a esposa e os filhos que, tragicamente, foram sendo ceifados pela morte. (Em Tolstoi, a tragicidade social e transcendental se configuram como dois braços de uma mesma cruz.)

Em face da injustiça imposta pela finitude – “Por que minha esposa? Por que meus filhos? Por que eu?” –, Adveitch deixa de ir à igreja (o silêncio de Deus se torna insuportável), passa a beber e se revolta contra sua condição. Quando tudo se encaminha para o suicídio, um velho conterrâneo se apieda de Adveitch e lhe dá um conselho: Deus teria uma razão para fazer com que a esposa e os filhos fossem embora. Para prosseguir, Adveitch precisaria viver não para si, mas segundo os evangelhos.

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Notemos que o conterrâneo do sapateiro não prega o retorno de Adveitch à comunidade dos fiéis ortodoxos, mas lhe fala sobre o altruísmo e o amor que despontam dos ensinamentos de Jesus Cristo. Quando, da janela de seu quartinho, Adveitch observa o mundo a partir de seu novo prisma cristão, o egotismo de sua tragédia – “Por que eu, meu Deus?!” – dá lugar ao sofrimento do outro que ele quer ajudar: um soldado esfarrapado, uma mãe esquálida que mal consegue proteger o bebê do frio, um menino que rouba para comer. 

É bem possível questionar os limites das transformações sociais propostas por Tolstoi a partir da renovação do coração humano, mas não deixam de ser radicalmente críticos os questionamentos em relação a seus privilégios de classe e a incessante busca espiritual que levou o escritor ao sentido da ação benevolente e à ruptura com uma igreja que lhe parecia o bastião dos privilégios e do obscurantismo. Ao fim e ao cabo, assim falou Liev Tolstoi, excomungado pela Igreja russa em 1901: “Eu reneguei a Igreja Ortodoxa não porque tenha me insurgido contra o Senhor, mas porque queria servi-lo com todas as forças da minha alma. Dediquei alguns anos a pesquisar a teoria e a prática de seu ensinamento, obedeci com rigor, durante mais de um ano, a todas as ordens da Igreja, observando jejuns e frequentando cerimônias religiosas. E então me convenci de que o ensinamento da Igreja é, em sua teoria, uma mentira pérfida e, em sua prática, a reunião das superstições mais grosseiras que ocultam o sentido do ensinamento cristão.” 

*FLÁVIO RICARDO VASSOLER É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY. AUTOR DE ‘O EVANGELHO SEGUNDO TALIÃO’ (NVERSOS), ‘TIRO DE MISERICÓRDIA’ (NVERSOS) E ‘DOSTOIEVSKI E A DIALÉTICA’ (HEDRA)

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