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Ricardo Labuto Gondim põe em xeque ideia de 'país do futuro' em contos lovecraftianos

'Colapso' reúne oito narrativas insólitas que prestam tributo ao realismo mágico e ao horror cósmico

Por André Cáceres
Atualização:

“Ninguém acredita em bruxas, mas se por acaso encontram uma, matam”, escreve o autor argentino Julio Cortázar em seu conto Bruxa, de 1943. A aparente contradição da sentença é uma boa porta de entrada para as narrativas breves recém-publicadas de outro escritor sul-americano que explora a literatura fantástica para apontar brechas da realidade: o carioca Ricardo Labuto Gondim.  Em Colapso, ele reúne oito contos que flertam, em maior ou menor medida, com o fantástico e o insólito, prestando tributo a nomes do realismo mágico latino-americano como o próprio Cortázar e seu antecessor Jorge Luis Borges, mas também ao horror cósmico e psicológico de H.P. Lovecraft, William Hope Hodgson e Guy de Maupassant.

'O insólito, o mito aponta para as fantasias que nós temos sobre o ser brasileiro', diz Ricardo Labuto Gondim Foto: Wilton Junior/Estadão

Além de escritor, Labuto é teólogo e sua formação intelectual determina em grande parte a mediação que seus narradores fazem entre a produção e a recepção dos contos. Se por um lado seu estilo enunciativo reduz a autonomia interpretativa do leitor, por outro suas intervenções carregadas de erudição elucidam pontos que ampliam a experiência estética de sua obra. Um elemento recorrente nas narrativas de Colapso é a ideia de confluência cultural: profundo conhecedor de várias mitologias, Labuto costura lendas de pontos distintos do planeta e de diversas épocas para explorar suas afinidades. O primeiro conto do volume, Cemitério dos Mortos Rebeldes, narra um exorcismo no Rio de Janeiro em 1854 e busca as origens do mito dos mortos-vivos nos ‘vrykolakas’ da Grécia antiga, nos ‘vetalas’ das Mil e Uma Noites, nos ‘mullos’ dos ciganos da Romênia e nos vampiros da Inglaterra vitoriana.  O mais interessante exemplo, no entanto, dessa confluência mitológica, está na noveleta Ellas. Na trama, o professor de teologia Levy é contratado por Madame Brusque, uma senhora abastada e misteriosa, para recuperar as fotos subaquáticas das paredes gravadas por um suposto profeta do sertão em uma igreja submersa no interior de Pernambuco. A igreja existe de verdade em Petrolândia, inundada para a construção de uma barragem, situação semelhante a uma capela de Curón, na Itália.  Na ficção de Labuto, porém, Eliseu, uma figura messiânica do sertão e um artista popular que cuidava desse templo pernambucano, teria gravado em suas paredes pouco antes da inundação o Livro de Micaías (um dos profetas pré-literários, que não deixou suas pregações escritas) em grego koiné e uma improvável reelaboração do afresco Trionfo della Morte, pintado em 1350 pelo florentino Andrea Orcagna na Basílica de Santa Croce, em sua cidade natal. O fotógrafo enviado a Petrolândia para fazer imagens dessas obras, no entanto, teria tido um colapso mental durante essa tarefa e estava internado em uma instituição evangélica para cuidados psicológicos. Por isso o professor Levy é chamado, como uma espécie de detetive teológico, para ter acesso às fotos feitas na igreja pernambucana e traduzir o livro apócrifo de Micaías. Como nos melhores contos lovecraftianos, ele se vê imerso em um embate entre cultos antigos que guardam, como a Madame Brusque diz, “segredos mais antigos que a eternidade”.  Embora o afresco de Orcagna reproduza a figura de Lúcifer descrita na Divina Comédia, tanto o pintor florentino real quanto o pernambucano fictício traçaram quatro serpentes que não são mencionadas por Dante Alighieri em seu épico. “Hoje, penso que Eliseu foi tocado pelas mesmas emanações imemoriais que o artista florentino”, diz Levy antes de partir para uma reflexão de quatro páginas sobre a serpente como signo primordial do caos. Para isso, Labuto percorre narrativas hebraicas, bíblicas, o Livro dos Mortos egípcio, a Teogonia de Hesíodo, a Eneida de Virgílio, o Anel dos Nibelungos de Wagner, o gnosticismo cristão, o candomblé, as mitologias indiana, chinesa, asteca, nórdica, africana, tupi e o folclore brasileiro em um exemplo supremo de confluência, mostrando como todas essas culturas apontam para um denominador comum. “Isso é uma influência da teologia”, explica Labuto em entrevista ao Estadão por videochamada. “Você pode pegar narrativas diferentes e as diferenças entre elas são superficiais. Se você vai removendo a diferença, consegue tirar a unidade fundamental. Isso é um princípio teológico.” O escritor conta que levou dois anos para escrever esse trecho que compara as diferentes mitologias, mas ele sintetiza um aspecto relevante de sua poética. “Como o mundo está ficando cada vez menor, essa integração é importante para mim, porque o que me preocupa mais naquilo que escrevo é o ser humano, e o ser humano é essa unidade.” Sobre a prevalência do elemento fantástico em suas narrativas, Labuto afirma: “O insólito do ponto de vista de uma narrativa é o melhor caminho para se chegar a alguma coisa. Eu trabalho em uma mão dupla: ou algo insólito acontece em um meio banal ou o banal conquista uma dimensão extraordinária”. No entanto, o escritor destaca que esse recurso narrativo jamais aponta para algum tipo de escapismo. “O insólito, o mito aponta para as fantasias que nós temos sobre o ser brasileiro”.  Para ele, essa ideia se afirma em Cemitério dos Mortos Rebeldes, que embora se passe no Brasil império é narrado pelo protagonista já velho, durante a proclamação da República, tentando apreender algo sobre o país a partir de uma experiência individual com o oculto. Labuto afirma que tenta explorar “o mito do país do futuro, o mito de que o Brasil, por sua riqueza cultural e geopolítica, por suas riquezas naturais, está destinado à grandeza. Não está se não houver projeto. O que é ser brasileiro? É acreditar que esse país vai dar certo mesmo sem querer. Não vai. Tem que ter um projeto. Nosso mito é que é inevitável o encontro do Brasil com um futuro esplêndido. Se não houver um projeto, vamos ser sempre o quintal de muita gente e fornecedor de matéria-prima.” É partindo sempre da experiência brasileira que Labuto consegue alcançar suas temáticas mais profundas. Em mais de uma narrativa de Colapso, a pandemia de covid-19 é mencionada, e ela chega a vitimar um personagem em Fermata. É notável também o conto 15 Minutos, em que um aspirante a escritor encontra um fantasma em sua casa no bairro carioca do Méier, evento que confronta seu ateísmo e coloca suas convicções em xeque enquanto ele busca uma explicação científica para a aparição recorrente. “A fé que não se fixa em nada é um pretexto para se acreditar em tudo”, narra Labuto, que concilia razão e fé de maneira exemplar. Já o conto Simetria do Paradoxo, ao mesmo tempo em que brinca com a autoficção, usa dois expedientes característicos da escrita de Borges: por um lado, fala com propriedade da obra de um escritor que não existe como se ela fosse real; por outro, se coloca dentro da própria trama, levando o autor/personagem Ricardo Labuto Gondim a ser assassinado pelo narrador e editor da obra do fictício escritor Álvaro Armond. Embora tenha se lançado na literatura tardiamente – seu primeiro livro, Deus no Labirinto (2012), foi publicado aos 46 anos –, o autor já soma três romances, com destaque para a ficção espacial Corrosão (2018), finalista do prêmio Argos e vencedor do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica.  Em Colapso, Ricardo Labuto Gondim brinda o leitor com contos repletos de personagens que, por alguma circunstância, se deparam com uma brecha da realidade cotidiana e acabam por espreitar o abominável, vislumbrar a hedionda face de um universo que, quando não ignora a humanidade, a despreza. “Nesse combate que se trava entre um texto apaixonante e o leitor, o romance sempre ganha por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute”, adverte Cortázar em uma palestra célebre. Pois o novo livro do autor nos leva à lona narrativa após narrativa.

O escritor Ricardo Labuto Gondim, autor de 'Colapso' Foto: Wilton Junior

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Leia um trecho de 'El!as'

“No que eu me meti, doutor? Ele me avaliou com malícia, medindo o risco de se confessar a um cadáver. – Em segredos mais antigos que a Eternidade. A esfera de espaço-tempo que o senhor chama de Universo é um átomo. A verdade, o real, é domínio de Criaturas Siderais. Os Antigos possuíram a Terra milhões de anos antes do homem existir. E geraram escravos que se revoltaram. Houve, digamos assim, complicações. Eles são matéria, potência, entidade. Detêm o conhecimento do Poder além de toda ciência e filosofia, mas obedecem a certas leis. Alguns alinhamentos estelares são temidos. Outros são desejados para partir... ou voltar. Existem os que regressaram para suas estrelas negras nos abismos cósmicos... e velam. Existem os que dormem... e sonham. Há tantos Cultos quantos são os ramos e linhagens dos Criadores e Criaturas. Entidades entrelaçadas em pactos, traições, fúria e rancor. Elas só conhecem o mal e o ódio... exatamente como nós. Os Cultos manifestam essas virtudes. – Madame B.?  – Descende de uma estirpe mestiça. – Stier bocejou com enfado. Por um momento não esteve ali. – Ninguém sabe quando vai acontecer...  – O que está para acontecer? Ele negou com a cabeça. Insisti. – Eliseu descobriu um sortilégio, não é isso? – Eliseu teve um sonho que não era dele – assentiu. – Nem do Céu, nem dos anjos."

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