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Risco é avaliar o ser humano só pela eficiência

As imperfeições seriam intoleráveis e na intolerância diante do imperfeito perderíamos a capacidade de amar

Por Márcio Fabri dos Anjos
Atualização:

Os fetos anencéfalos levantam hoje questões éticas contundentes, que estão sendo debatidas. O cuidar, numa perspectiva bioética, significa tratar com responsabilidade e respeito os seres nas situações em que estão envolvidos. Mas como fundar a ética desse cuidado diante da pergunta: é lícito abortar fetos anencéfalos? Dados biológicos constituem um necessário ponto de partida neste assunto. Considero três pressupostos: que a anencefalia consiste em má conformação pela qual o feto não tem o encéfalo e garante seus sinais vitais basicamente através do tronco cerebral; que a gestação de fetos com embriopatia grave como esta com freqüência é interrompida naturalmente; que os fetos anencéfalos nascidos têm duração de vida muito breve. Considerando a anencefalia uma impossibilidade real de futuro consciente para o feto, postula-se hoje que ele seja tomado como um ser humano, mas não como um ser pessoal. O pensamento de São Tomás de Aquino já havia notado a necessidade de matéria adequada para se falar da forma humana, uma razão pela qual defendia a infusão da alma depois de 40 a 80 dias da fecundação. Hoje, embora com reservas, propõe-se também a morte encefálica como critério de morte da pessoa, sem esquecer a dificuldade sobre a certeza do diagnóstico e a dúvida sobre a reversibilidade do processo, dúvida que não existe sobre a anencefalia. Em ambos os casos, o encéfalo é tomado como um órgão vital, sem o qual não existe vida pessoal. Um contraponto a esse argumento anota a precariedade da representação da pessoa reduzida apenas a esse critério funcional e pragmático. O ser pessoa se dá também na rede de relações, pelo que se propõe um profundo respeito às possibilidades remanescentes de ser humano pessoal que lhe restam, não obstante suas radicais limitações. Soma-se a isso um alerta contra a tendência em muitas práticas de eliminar os fetos com outras deficiências menos graves, abrindo o caminho para um eugenismo inaceitável. A gestante e/ou casal na gravidez de feto anencéfalo traz também uma importante interrogação ética. Sujeitos de percepções e sentimentos constituem a instância imediata e indispensável para cuidar do feto anencéfalo. Entretanto, com que motivações e base emocional contam, entre outras forças, para assumir tal situação? Quem poderia socorrer a tempo ou substituir suas expressões de cuidado, quando suas motivações e forças se mostram insuficientes para tanto? Diante do peso que isso significa, algumas propostas sugerem que a decisão pela acolhida ou pelo abortamento seja tomada pela gestante e/ou casal. Um problema ético dessa proposta estaria contido nas questões anteriores, isto é, até que ponto considerar o feto anencéfalo como um ser humano pessoal. Pois conferir o poder de decisão vital de uns seres humanos pessoais sobre outros seria extrapolação ética inaceitável. Coloca-se, então, a pergunta sobre o ordenamento jurídico referente à possibilidade de abortamento de fetos anencéfalos. Sabe-se como a disposição constitucional de proteger a vida humana nascente não é considerada oposta à prática de abortamento em casos de necessidade terapêutica da gestante em casos de estupro. A esses se somaria o caso de anencefalia. Mas a polêmica se sustenta por quem questiona a base ética de tais dispositivos legais. Mais do que defender uma proposta, parece importante fornecer elementos para uma percepção mais ampla das questões e razões em torno do tema. Não obstante a brevidade dos acenos, percebe-se que a discussão sobre o cuidado aos fetos anencéfalos traz consigo outras questões éticas que transbordam do fato pontual. Com os avanços científicos, aumentam gradativamente os recursos de diagnóstico e de intervenção nos processos biológicos. Cresce com o poder técnico a responsabilidade ética. Esta se constrói dentro de um ambiente cultural que também inspira cuidados éticos. De fato, vários analistas chamam a atenção para o risco de que o fascínio pela eficiência técnica instaure a hegemonia da razão instrumental em todos os campos da ação humana, inclusive no cuidado sobre os próprios seres humanos. Em outros termos, que os seres humanos sejamos avaliados, quase como máquinas, pelo critério da eficiência e do funcionamento. As imperfeições seriam cada vez mais intoleráveis. E, na intolerância diante do imperfeito e do frágil, perderíamos a capacidade preciosa de amar, embrenhando cada vez mais, como diz Fukuyama, em um futuro pós-humano. A tarefa ética correspondente a essas ameaças em curso exige uma tomada de consciência crítica sobre o ambiente moral que estamos fermentando nesse momento cultural. Nela vai a chance de dar qualidade ética às decisões e aos ordenamentos jurídicos, incluindo este referente aos fetos anencéfalos. * Márcio Fabri dos Anjos é teólogo, bioeticista e professor do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo

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