Ruas e urnas

Setores que lutam por direitos civis enfrentarão a legislatura mais conservadora em 50 anos

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Por Wagner Iglecias
Atualização:
Deputado Marcos Feliciano (PSC-SP) Foto: ED FERREIRA/ESTADÃO

Sob certa ótica o Brasil caminha bem, e vive talvez o melhor momento de sua História: há 30 anos retomamos a normalidade democrática, consolidando aquele que já é nosso mais longo período de estabilidade política; há 20 anos, após inúmeros planos econômicos fracassados, conquistamos a estabilidade da moeda; e há uma década temos conseguido combater de forma mais contundente a miséria e a má distribuição de renda, traços marcantes de nossa formação durante séculos. No entanto, se o País vai bem, a sociedade vai mal. É difícil encontrar na memória uma época em que a intolerância, em suas mais variadas formas, tenha se mostrado tão forte – intolerância política, religiosa, de classe, de região de origem e relativa à orientação sexual. 

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Sob outra perspectiva, no entanto, é possível dizer exatamente o contrário: nunca antes em nossa história as questões dos direitos civis mobilizaram tanta gente e tiveram tanto espaço no debate público. Nunca a sociedade esteve tão atenta a esses assuntos. O Brasil jamais viveu um período em que tantas “minorias” tenham alcançado um grau tão avançado de mobilização política na demanda por seus direitos e pressionado tanto nossos governantes. Que não nos deixem mentir os tantos pleitos de homossexuais, negros, indígenas, mulheres, sem-terra e vários outros setores que têm pautado boa parte da agenda nacional nos últimos anos. No entanto, em meio a toda essa mobilização, é o Estado que tem se mostrado, muitas vezes, insensível, tímido ou resistente às demandas destes setores, em que pese a criação de estruturas governamentais destinadas a dar conta de suas demandas. Se, por um lado, nas últimas décadas o País tem criado secretarias especiais voltadas a tratar das questões dos direitos humanos e da garantia dos direitos civis e das liberdades individuais, bem como ações afirmativas têm aos poucos saído do plano do discurso e se tornado políticas públicas levadas a cabo pelo governo federal e também por Estados e municípios, por outro a afronta aos direitos de diversos segmentos da população continua sendo uma nódoa na vida brasileira. 

A cada hora um homossexual sofre algum tipo de violência no Brasil. Nos últimos quatro anos cresceu em 460% o número de denúncias ligadas a homofobia. Têm sido relatados diversos casos de ataques a homossexuais, de agressões verbais a espancamentos e homicídios. Algo que parece usual em nossa história, e só tem maior visibilidade hoje exatamente pela criação de instâncias governamentais destinadas a lidar com a questão. Matérias análogas divulgadas pela imprensa há anos relatam casos de racismo, ataques a povos indígenas, agressões contra mulheres, idosos, crianças, moradores de rua, etc. Parece óbvio que a construção de uma sociedade melhor deverá passar não apenas pela melhoria das condições materiais de vida dos brasileiros, mas também pela consolidação dos direitos civis e das liberdades individuais, algo tantas vezes difícil de imaginar em meio a tantos relatos de intolerância. 

Apesar dos avanços, porém, permanece nos Legislativos provavelmente o maior entrave à efetiva consolidação dessas demandas como direitos. O PLC 122/2006, por exemplo, que torna crime a homofobia, permanece há oito anos em tortuosa tramitação no Congresso Nacional. Prevendo até 5 anos de prisão para quem discriminar pessoas por causa de orientação sexual e identidade de gênero, o projeto conta com forte oposição das bancadas religiosas. Essas parecem preferir a aprovação do PL 6583 /2013, conhecido como “Estatuto da Família”, que define família como o núcleo formado pela união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento e união estável ou comunidade formada pelos pais e descendentes. 

O tal estatuto vai na contramão do que se observa em inúmeros países nos quais outros modelos de família têm sido reconhecidos pelo Estado. Quando se fala nisso logo se pensa em sociedades menos conservadoras em termos morais, como as do norte da Europa. Mas nem é preciso ir tão longe para se dar conta de que avanços em relação aos direitos civis têm sido muito mais acelerados até entre nossos próprios vizinhos do que no Brasil. Argentina e Uruguai, por exemplo, já têm aprovadas suas leis anti-homofobia. E seguem avançando em diversos outros temas, como no caso da legalização do aborto (para além de casos de violência sexual e de risco à vida da gestante). O aborto já está legalizado no Uruguai e, por causa da intensa mobilização de grupos feministas, entrou há pouco na pauta do Congresso argentino. 

A forte resistência que se observa a temas como esses no Parlamento brasileiro põe o País diante de uma encruzilhada: há uma forte pressão mudancista, em diversos aspectos, na sociedade brasileira, que no entanto não se materializa no exercício do voto. A próxima legislatura, a iniciar-se em janeiro, será provavelmente a mais conservadora dos últimos 50 anos. Os setores que lutam pelos direitos civis e pelas liberdades individuais conseguem em grande medida pautar o debate brasileiro. Mas seus adversários conservadores conseguem abrigar-se muito bem na trincheira dos Legislativos e dos governos. Configura-se aí mais um gap entre as ruas e as urnas cujo desenlace provavelmente não será simples. 

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Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP

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