Ruidosos agentes do silêncio

Tropas de assalto jogam duro para calar a liberdade de informação

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Por Demétrio Magnoli
Atualização:

Hugo Chávez não sabe quem foi John Milton. No Areopagítica, de Milton, está escrito: "Aquele que mata um homem, mata uma criatura da razão, feita à imagem de Deus, mas aquele que destrói um bom livro, mata a própria razão, mata a imagem de Deus". Subtitulado como Um Discurso ao Parlamento da Inglaterra pela Liberdade da Impressão sem Licença e publicado em 1644, no auge da guerra civil, o texto contém a mais clássica das justificativas racionais contra a censura. Milton acreditava na razão humana e, portanto, na capacidade das pessoas de distinguir as boas ideias das más. Chávez também acredita nela - e justamente por isso empreende uma campanha estatal contra a liberdade de imprensa.

 

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George W. Bush invocou a palavra "terrorismo" para trair o compromisso dos EUA com os direitos humanos e legalizar a tortura. Mas tudo começou com terroristas de carne e osso, que fizeram o fatídico 11 de setembro de oito anos atrás. Chávez apropriou-se da palavra para, mesmo sem terroristas, delinear uma campanha internacional: em março de 2008, Caracas sediou o 1º Encontro Latino-Americano contra o Terrorismo Midiático, um evento destinado a combater jornais e redes de TV que seriam "porta-vozes dos interesses imperiais". O canal noticioso venezuelano Globovisión converteu-se, então, no alvo de um governo que já fechara a RCTV. Há pouco, em meio a pressões oficiais contra o canal, uma turba chavista invadiu suas instalações. Já se usam tropas de assalto para calar a imprensa, no país cuja candidatura ao Mercosul é patrocinada pelo governo brasileiro.

 

"A segurança nacional deve prevalecer sobre a liberdade de expressão", explicou a promotora pública venezuelana ao apresentar um projeto de lei destinado a controlar os meios de comunicação. Se os EUA tivessem aplicado esse princípio há quatro décadas, a Guerra do Vietnã talvez acabasse de outro jeito. O projeto cria a figura dos "delitos midiáticos", que abrangem a divulgação de informação que cause "prejuízo aos interesses do Estado", atente contra a "moral pública" ou a "saúde mental" da população. O Estado - nesse caso, um Estado cada vez mais personificado no caudilho - decide, é claro, sobre o que significa cada uma dessas tipificações. A lei chavista é um modelo: no Equador, na Bolívia e na Nicarágua, países da Aliança Bolivariana das Américas (Alba), desenham-se legislações similares.

 

Na Argentina não se vai tão longe, mas o jornal El Clarín sofreu uma invasão de uma "tropa de assalto" singular, constituída por fiscais de tributos que agiam a mando direto da presidência e ao largo do próprio órgão de fiscalização tributária. Uma nova lei de serviços audiovisuais, patrocinada pelos Kirchners, tramita no Congresso e tem como alvo direto o grupo Clarín.

 

Na antiga URSS, dissidentes eram rotulados como "doentes mentais" e internados em instituições psiquiátricas. A referência à "saúde mental" da população, na lei de censura venezuelana, não é apenas um expediente para criminalizar o jornalismo, mas uma evidência do que efetivamente pensam os arautos do combate estatal à liberdade de expressão. Milton, no Areopagítica, esboçou o conceito de um "mercado de ideias". A ofensiva contra a imprensa imagina a concorrência de ideias como uma doença social que ameaça o poder de Estado.

 

José Sarney não é, evidentemente, um chavista - mas sempre sabe surfar numa nova onda, a fim de proteger seus interesses patrimoniais. Num discurso no Senado, dias atrás, ele classificou a "mídia" como "uma inimiga das instituições representativas". Há um método infalível de saber a posição de cada um na polêmica sobre o controle da liberdade de expressão: se alguém emprega o termo "mídia" no lugar de "imprensa" é porque flerta com a ideia da censura. "Mídia" indica a indústria do entretenimento, um setor da economia de mercado; imprensa é a difusão de informação e opinião, um pilar insubstituível da democracia.

 

A onda que sustenta a prancha de Sarney avolumou-se, no Brasil, com o episódio do "mensalão". A trajetória do pensamento da filósofa Marilena Chauí pontua a mudança. Num debate com o também filósofo José Arthur Giannotti, em 2001, Chauí escrevera que "ao desqualificar os partidos políticos e a imprensa, Giannotti desqualifica politicamente algo mais profundo: a sociedade civil e o conjunto dos cidadãos". Era o tempo do governo FHC e a filósofa petista escrevia abundantemente nos grandes jornais. No auge do escândalo de 2005 ela já substituíra "imprensa" por "mídia" e mudara radicalmente de ideia. A "mídia" não representa nada além dos interesses das elites, pois, na sociedade capitalista, os meios de comunicação são empresas privadas e, portanto, pertencem ao espaço privado dos interesses de mercado", ensinava numa carta postada na internet.

 

A Chauí de 2001 prezava o "mercado de ideias" e sabia que os interesses políticos dos empresários de comunicação estão subordinados a seus interesses empresariais. A imprensa depende dos leitores e anunciantes - e só os têm se conservar a credibilidade. Mas a Chauí de 2005, que se recusava a escrever ou falar para jornais, traduzia numa linguagem "sofisticada" o mantra simples da esquerda autoritária, para a qual a "liberdade de imprensa é a liberdade da empresa". Enquanto ela conferia legitimidade à senha ideológica, Lula selecionava jornalistas "confiáveis" e deflagrava o projeto de criação de um aparato midiático chapa branca centralizado na TV Brasil.

 

Chávez controla hoje seis emissoras de TV, oito rádios, uma agência de notícias, centenas de sites e a maior provedora de internet da Venezuela. No Brasil, supostos especialistas em comunicação social engajados no programa do "controle social da mídia" apontam na Europa exemplos de países em que o poder público detém parcela expressiva dos meios de radiodifusão. Evidentemente, eles não aprofundam a comparação, silenciando sobre o abismo que separa a independência editorial da BBC da submissão das redes de TV estatais da América Latina aos detentores do poder político. É que, não por acaso, quase todos eles admiram a ditadura cubana, na qual todos os meios de comunicação ecoam a diretriz única do partido-Estado.

 

O Brasil não é a Venezuela. Mas os inimigos da liberdade de imprensa fazem parte do consórcio heterogêneo que está no poder. No início de dezembro, o programa do "controle social da mídia" dará um novo passo, realizando a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). O convescote reunirá essencialmente órgãos de governo e ONGs ligadas ao PT, pois as entidades representativas das emissoras de TV, dos jornais, das revistas e dos provedores de internet decidiram boicotá-lo. Eu sugiro que alguém distribua cópias do discurso de Milton aos participantes. Ele continua muito atual.

 

*Sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP, colunista do Estado

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