Ruim para a GM, bom para o mundo

O carro a gasolina já teve sua hora. Hoje, nas fronteiras asiáticas da globalização, a máquina verde avança

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Por Aditya Chakrabortty
Atualização:

Algumas companhias sucumbem por má administração, algumas são esmagadas por uma recessão prolongada. Mas de vez em quando se dá o caso de uma empresa cuja morte é resultado de muito mais que cadeias de fornecedores ou metas de vendas: é uma morte que parece ressoar por toda uma era. Os sinos certamente dobraram fúnebres essa semana quando a General Motors pediu concordata.

 

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Basta falar de GM que logo surgem os superlativos. O que é hoje o maior fracasso industrial da história americana foi, durante muitos anos, a maior companhia do mundo. Mais que isso, a gigante de 100 anos era a materialização corporativa do Século Americano.

 

Todos conhecem aquela tirada de um ex-chefe da General Motors que (quase) disse que o que era bom para sua companhia era bom para os Estados Unidos, e vice-versa. Hoje, a declaração é usada com ironia fácil, mas na época de Charles Wilson ela expressava um truísmo. Ele estava falando alguns anos depois da 2ª Guerra, durante a qual os fabricantes automotivos supriram as forças militares americanas com centenas de bilhões de dólares em aviões, tanques e outros equipamentos militares. O teórico de administração Peter Drucker disse que não foram os generais mas a General Motors que "ganhou a guerra para a América". E elas foram lindamente recompensadas, com regulamentos tolerantes e impostos ridiculamente baixos sobre combustíveis. Era o complexo industrial da gasolina, assim se poderia chamá-lo, que durante boa parte do período do pós-guerra se manteve bastante bem.

 

Não se mantém mais. Das Três Grandes de Detroit, a GM e a Chrysler estão hoje debilitadas, vivendo do soro de dinheiro que o governo goteja em suas veias. Somente a Ford evitou o mesmo destino, tomando um empréstimo gigante há três anos e começando a própria e dolorosa reestruturação.

 

O quadro oficial é que a GM não está morta, apenas se reagrupando. Enquanto administrava os ritos finais na última semana, Barack Obama anunciou "o começo de uma nova GM". Mas o fato é que nenhuma segunda chance na vida americana e no mundo dos negócios é minimamente mais clemente. Até os otimistas admitem que o que vier a emergir de Detroit será uma coisa modesta, encolhida, privada de sua pompa e poder.

 

Assim como a ascensão de Detroit foi mais que negócios, sua morte também o é. Quando as pessoas falam do crescente poder econômico da Ásia, elas normalmente o pintam em termos delicados, graduais - fotos oficiais em cúpulas internacionais, digamos. Mas às vezes essa lenta mudança de poder torna-se mais que uma guinada. Às vezes ela é marcada por uma humilhação industrial.

 

Para Porsche, BMW e outras marcas de luxo, Xangai já é o segundo mercado mais importante no mundo. E este ano, pela primeira vez em todos os tempos, os chineses poderão vir a comprar mais carros que os americanos atingidos pela recessão. Mas os países em desenvolvimento da Ásia não estão somente consumindo mais - eles estão fechando as brechas no processo de manufatura. Com isso, estão num consagrado caminho para a industrialização, acompanhando o Japão e a Coreia do Sul. Esses países foram pioneiros em carros pequenos e mais baratos. Desta vez, as novas fronteiras da globalização estão abrindo caminho para os carros elétricos.

 

Sim, vocês leram corretamente: o automóvel verde, o fogo-fátuo da indústria automobilística, já está sendo feito na fumacenta Ásia. O carro elétrico de melhor vendagem do mundo, o G-Wiz, foi inventado e construído por uma empresa indiana, a Reva. A companhia que foi mais longe no desenvolvimento de um automóvel movido a bateria que pode percorrer longas distâncias chama-se BYD (sigla de Build Your Dreams, ou Construa seus Sonhos), e está baseada em Shenzhen, no sul da China. É verdade que o G-Wiz é engraçado, está mais para aqueles carrinhos elétricos de leiteiro que um automóvel de verdade. Mas os americanos costumavam rir da Toyota - e agora ela é a número um do mundo. Ao pleitear ajuda de Washington, executivos da GM enalteceram seu novo veículo elétrico, o Volt - mas este está há anos de distância das vendas. Essa lentidão não é surpresa em uma companhia cujo vice-presidente, Bob Lutz, teria descrito, no ano passado, o aquecimento global como "enganação".

 

Uma vez fissurado na gasolina, sempre um fissurado na gasolina. E essa é a outra grande diferença da brigada elétrica: um número muito pequeno de seus líderes é do meio automobilístico. O fundador da Reva vem do setor de energia solar; a BYD costumava fazer baterias para celulares e só entrou nos carros esta década; o israelense Shai Agassi, principal projetista de um sistema para recarregar veículos elétricos, teve grande atuação na área de softwares para contabilidade.

 

"A indústria automobilística está caminhando para um embate entre disciplina e imaginação", diz John Wormald, consultor britânico de empresas automotivas por mais de 30 anos. "Os velhos gigantes têm muita disciplina e peso; mas os iniciantes têm muito mais imaginação." Ou, como um executivo chinês do setor explicou a um nova-iorquino não muito tempo atrás: "Não temos marca, não somos reconhecidos, nada. Somos agressivos".

 

Muita gente lerá tudo isto como um triunfo da economia de livre mercado: o velho sobrepujado pelo novo, o bem público beneficiado por um dinâmico setor privado, e "destruição criativa" no mais alto grau. Não estou tão certo disso. Alguém que já tenha ido à Índia e à China sabe que o que eles realmente precisam é de menos carros e mais transporte público barato, movido o mais limpamente possível. E isso tudo é bem mais provável agora que as Três Grandes dos EUA têm menos domínio do setor automotivo. A partir da última semana, a indústria automobilística está vivendo na era AD (d. C.): Após Detroit.

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