Rumo à luta decisiva

Para o brasilianista Anthony Pereira, a decisão de Dilma Rousseff de nomear Lula ao ministério acelera o fim da crise política no Brasil – mas o destino segue imprevisível

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Por Andrei Netto CORRESPONDENTE e PARIS
Atualização:

Até duas semanas atrás, a perspectiva de que as operações da Polícia Federal e a Justiça do Paraná pudessem chegar ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava na cabeça de todos os brasileiros, mas não passava de uma guerra fria, de bastidores. Sua condução coercitiva para depoimento e a seguir sua nomeação do ex-chefe de Estado ao cargo de ministro-chefe da Casa Civil pela presidente Dilma Rousseff escancararam ao País o confronto.

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Para o brasilianista britânico Anthony Pereira, diretor do King’s Brazil Institute do Kings College of London, o novo cenário da crise política indica que o Brasil caminha para seu showdown, uma queda de braço final com uma força política que marcou época, mas hoje responde à Justiça por seus erros. O destino desse confronto não deve ser decidido nas ruas, e sim nos tribunais de Curitiba e Brasília e nos corredores do Congresso Nacional. É, nesse sentido, um desfecho diferente daquele enfrentado pelo 32ª presidente da República – um certo Fernando Collor de Mello, que renunciou ao cargo, mas também acabou destituído em 1992 pelo voto dos congressistas, que responderam à pressão dos “Caras pintadas” nas ruas.

Especialista em democracia e autoritarismos, em mudanças de regimes e movimentos sociais, além de ter se debruçado sobre a transparência das instituições públicas de segurança e Justiça no Brasil, Anthony Pereira não analisa apenas os meandros políticos de Brasília. Seu tema de PhD em Harvard foram as organizações de trabalhadores rurais no Nordeste do Brasil em dois períodos – 1950-1960 e 1970-1980.

Ex-professor visitante no Departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal de Pernambuco, Pereira concedeu entrevista exclusiva ao Estado em dois momentos, na quinta e sexta-feira. Para o expert, a sociedade brasileira precisa aprender a lidar com seus líderes – que não são nem “salvadores da pátria”, nem “inimigos número 1”.

Qual é a sua análise sobre os últimos desdobramentos da crise: a escolha de Lula como ministro-chefe da Casa Civil?

Vejo isso como uma tática que tem muito risco para Dilma. Ela tenta ajudar Lula, mas também fortalecer o governo, apostando muito forte na capacidade de Lula de formar uma maioria no Congresso e acalmar os ânimos na Câmara, em relação ao impeachment. É muito arriscado porque a percepção é de que ela está ficando em segundo plano no próprio governo dela. Outro risco é provocar uma onda de indignação nas ruas, na Justiça, no Congresso, e Lula não vai ter essa capacidade de fortalecer o governo. É um showdown. Ela está acelerando a resolução da crise.

E sobre a revelação das escutas?

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Eu estava lendo há pouco os comentários dos juristas Miguel Reale Júnior e de Dalmo Dallari. Eles têm perspectivas totalmente opostas. Dallari diz que o vazamento é ilegal, mas para Reale é algo totalmente dentro do Estado de Direito. É uma situação complexa que envolve conflitos nas ruas, no Congresso e nos tribunais. Do ponto de vista de Dilma Rousseff, ela pode perder nas ruas. O que ela não pode perder é na Justiça, nem no Congresso.

No domingo e nos últimos dias, houve manifestações contra o governo e a corrupção. O senhor acredita que a pressão das ruas pode mudar algo?

Acho que não. Todos comentaram que havia mais pessoas no domingo que nas Diretas Já. Mas é bom lembrar que o movimento Diretas Já não saiu vencedor. As eleições foram indiretas. Não acho que as ruas resolverão – e isso é bom para a democracia no Brasil. Na Bolívia, as manifestações derrubaram vários governos. No Brasil, as instituições são mais fortes. Quando as ruas ultrapassam as instituições, há uma democracia plebiscitária, sem instituições fortes. É importante que a resolução final seja mais institucionalizada, com uma decisão do TSE ou do impeachment. Mas não tem dúvida de que as manifestações mudam o cálculo das autoridades no Judiciário e no Congresso. Eles sentem essas pressões.

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A pressão das ruas pesou no processo de impeachment de Fernando Collor. Seu pedido de apoio à opinião pública acabou se transformando em imensas manifestações dos “Caras pintadas”.

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Sim, foi um tiro no próprio pé. Em lugar de fazer o que Nixon fez, ao dizer que a maioria silenciosa o apoiava, Collor chamou as pessoas às ruas, tentando ganhar seu apoio. Lembro de estar no Recife e ver as pessoas vestidas de preto para demonstrar que não estavam ao seu lado. A diferença agora é que Dilma talvez não esteja investindo em manifestações a favor para tentar garantir seu governo. Além disso, no caso Collor, a mobilização popular foi um fator muito importante, mas a ação determinante para tirar o presidente foi uma ação no Congresso. Talvez eu esteja enganado. Mas as decisões na Justiça e no Congresso me parece que serão determinantes.

Dois caminhos estão em questão para a eventual queda de Dilma Rousseff: o impeachment ou a decisão do TSE. Qual é a sua análise sobre as alternativas?

Para mim, o impeachment é mais provável, porque tem precedente, já aconteceu em 1992 com Collor. O calcanhar de aquiles no impeachment como vem sendo feito é que as pedaladas não são um argumento muito forte. Se compararmos com as evidências de envolvimento pessoal de Collor em 1992, é muito mais forte do que no caso de Dilma. Outros presidentes se engajaram na mesma prática. É verdade que, no Estado de Direito, é preciso começar a melhorar o sistema a partir de algum ponto. Por outro lado, se (as pedaladas fiscais) eram uma prática comum, isso parece mais fraco. Já o TSE seria um precedente muito interessante. Se não estou enganado, aconteceram cassações no caso de alguns governadores de Estado, mas nunca no nível presidencial. O problema para essa decisão do TSE é: as campanhas de outros candidatos também não eram totalmente lícitas? Gera esse problema da seletividade, que é endógeno em qualquer decisão jurídica. Creio que o impeachment é mais provável porque não envolve um salto tão alto.

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O senhor acredita no risco à ordem institucional? O Brasil pode sofrer algum tipo de golpe militar, político ou jurídico?

Boa pergunta. O diálogo entre governo e oposição nesse momento é fascinante. Eles estão usando metáforas, como o golpe de 1964, para os favoráveis ao governo, e o impeachment de 1992, para os opositores. Mas, na minha opinião, nenhum dos dois eventos é correto para descrever o que se passa hoje. O que os defensores do governo dizem é que a oposição está tentando ultrapassar os limites institucionais e constitucionais – o que para mim até agora não aconteceu. Sei que há uma larga interpretação, mas não vejo esse tipo de brecha institucional neste momento e, felizmente, hoje ninguém fala no uso de Forças Armadas como um ator relevante. Eu concordo com Leonardo Avritzer, professor da UFMG, que diz que a palavra “crise” não deveria ser utilizada para descrever o atual momento, porque até agora não houve ruptura institucional. De outro lado, em 1992 houve evidências de envolvimento pessoal do presidente na corrupção, com muitos dados sobre o assunto. Por enquanto, e não considerando o testemunho do senador Delcídio do Amaral, que até agora não faz parte das evidências consideradas pelo Congresso, a alegação para o impeachment de Dilma Rousseff é muito diferente da de Collor e diz respeito às manobras fiscais. Mas isso é muito comum em todo o mundo. O governo britânico faz isso todos os anos, inventa mecanismos para esconder dívidas e maquiar as contas públicas. O chanceler britânico George Osborne (ministro das Finanças) está sendo acusado disso neste momento. Para mim, 1992 também não é uma boa analogia para explicar 2016. É importante achar uma metáfora que funcione. Ou talvez não haja precedentes, o que explica que as pessoas busquem no passado uma data ou acontecimentos que entender os acontecimentos de hoje.

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Desde Getúlio Vargas, é recorrente no Brasil a interrupção ou a tentativa de interrupção de mandatos de presidentes eleitos, seja via golpe, seja via pedidos impeachment. Desde a Constituição de 1988, os pedidos de impeachment foram recorrentes. A sociedade brasileira como um todo não tem uma mentalidade golpista, inclinada à derrubada de governantes do poder?

Eu não diria golpista, mas vejo um investimento muito forte na figura do líder, do presidente – e isso para o bem ou para o mal. Em uma democracia, elevar ou negar o líder é perigoso. Em um artigo de Joshua Rothman para a revista The New Yorker, o autor cita um livro de Elizabeth Samet que menciona uma carta escrita por John Adams, presidente dos Estados Unidos no século 18: “(Adams) sugeriu, numa carta a um amigo, que havia algo antidemocrático e imprudente na idolatria da liderança”. Vejo no Brasil ciclos de “salvadores da pátria” e “inimigos número 1”. Vi isso muito claramente com José Sarney, Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso. Talvez a única diferença em relação a Lula é que está acontecendo após o seu período na presidência. Então, não digo que a mentalidade seja golpista, mas que há um investimento exagerado nas características do líder para salvar a democracia. E para mim é muito importante ter equilíbrio. O Brasil é um país rico e complexo. Nenhum líder será um mágico que transformará o país de imediato. Essa transformação é um processo longo.

O senhor acredita que Lula pode estabilizar o governo de Dilma Rousseff?

Não conheço o suficiente a relação de Lula com os membros do Congresso atual para avaliar isso. Se você compara as formas de lidar com o Congresso nos governos Lula e Dilma, verá que o governo Lula tinha fama de ser mais receptivo, era mais aberto, gostava de comunicar e criar redes, suavizando os problemas. Será que ele ainda tem esses canais de comunicação? Os deputados sentirão o que é bom para eles, mas poderão sobreviver politicamente fazendo pactos ou comunicando com Lula? As pesquisas mostram que há uma população indignada. A maioria das pessoas diz que quer o impeachment ou a renúncia. No contexto atual, e dentro dos cálculos dos políticos, não é claro que ele possa exercer essa influência. O próprio PT perdeu deputados a partir de 2014.

As últimas decisões tomadas pelo juiz Sergio Moro provocaram intenso debate sobre a legalidade das medidas. Qual é sua análise sobre o assunto?

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É fascinante a controvérsia sobre Sergio Moro. Pode ser um bom debate para o Brasil sobre as práticas dele e de outros juízes. A condenação de Marcelo Odebrecht, por exemplo, vai chegar ao STF e será interessante ver se as práticas da Justiça usadas para chegar à condenação serão mantidas. Vi a manifestação de advogados condenando as práticas da prisão por tempo indeterminando para obter a delação premiada, por exemplo. Para mim talvez o mais questionável seja o vazamento das notícias sobre as investigações, incluindo o vazamento das gravações das conversas do Lula feito por Moro. Mas, quando há vazamentos seletivos, se está processando pessoas em público, e pode haver outras pessoas que estão seletivamente ausentes das reportagens na mídia. Para mim, é problemático em um Estado de Direito permitir esse tipo de presunção, ou prejulgamento. É bom lembrar que o juiz Moro ainda não entrou com processo contra Lula. Pode ser bom para o Brasil no médio prazo debater essas práticas de Justiça para definir as que serão aceitáveis e permitidas. Moro talvez tenha encontrado o meio de eliminar práticas antigas na Justiça, como as apelações infinitas. A lei de 2013, que permitiu a delação premiada, mostrou que pode agilizar o sistema e provar a culpabilidade. Vai haver apelações e veremos se essas sentenças serão sustentadas.

Existem queixas reiteradas de parte do governo e da opinião pública que o apoia sobre a cobertura da mídia. Qual é sua visão a respeito?

Vou dizer o óbvio: quando há vazamentos seletivos, atrapalha a resolução calma, pacífica e racional do caso porque inflama os ânimos e fica mais difícil julgar. Não entendo bem como os vazamentos estão acontecendo. O padrão brasileiro no passado era de muita indignação e muita revelação pela imprensa de escândalos de corrupção. O próprio caso Collor é muito interessante: ele perdeu o mandato, mas, no lado da Justiça, não houve condenação. O que me parece positivo é que o Brasil hoje tem um judiciário mais rigoroso e capaz de condenar e não permitir a impunidade. O ponto agora talvez seja outro: falar sobre as táticas e os direitos dos acuados e tentar achar um ponto de equilíbrio.

Na Itália dos anos 1990, a operação Mãos Limpas tentou desbaratar as relações incestuosas entre líderes políticos e líderes empresariais. O sistema político desmoronou, Berlusconi chegou ao poder e o país não mudou. O senhor vê paralelo entre as operações da Lava Jato e a Mãos Limpas?

Li um artigo de meu amigo Matias Spektor fazendo o mesmo paralelo. Essa comparação é preocupante. Sou especialista em América Latina e não conheço o sistema italiano o suficiente para avaliar essa situação. Logo, o que vou dizer é uma expressão de valores, e não uma análise crítica. Realmente espero que as instituições brasileiras funcionem de uma forma diferente das da Itália. Há, em várias democracias do mundo, uma possibilidade real de que líderes do tipo Berlusconi cheguem ao poder. O caso mais atual é Donald Trump nos EUA. Essa comparação entre Itália e Brasil é preocupante, mas espero que as instituições possam sobreviver ao conflito no Brasil, e não abrir espaço para um político como Berlusconi. Por ora, não vejo uma figura desse tipo no horizonte brasileiro, mas há de fato um vácuo de lideranças com credibilidade neste momento.