Sangue sobre a neve

Focas são só algumas das vítimas da mais predadora criatura: o homem

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Em meio ao badalado 68, peço licença para lembrar um marco importante daquele ano. Um marco jornalístico. Em 26 de março de 1968, o tablóide londrino Daily Mirror chegou às bancas com sua primeira página inteiramente ocupada por uma foto. Tirada num banco de gelo do Canadá, registrava o exato momento em que um caçador acertava com um taco de beisebol a cabeça de um bebê-foca, branco como a neve, os olhinhos negros arregalados pelo terror. Em letras garrafais, a legenda: "O preço de um casaco de pele". Nas páginas internas, os detalhes excruciantes do massacre. Retirado à força das tetas da mãe, o bebê-foca tivera a cabeça esmigalhada e seu corpo esfolado à faca, na frente da mãe, cujos gritos de desespero ecoaram em vão pela geleira. Como para montar um casaco de pele são necessárias 40 foquinhas, 1 milhão delas passariam pela mesma provação nas semanas seguintes. Terminada a chacina, ao longo dos bancos de gelo encharcados de sangue e sujos de vísceras e carcaças, restavam apenas 1 milhão de mães-focas ensandecidas, expressando aos berros sua dor. Foi grande o impacto causado por aquela histórica edição do Daily Mirror. Mas as conseqüentes pressões sobre a indústria, o comércio e o consumo de peles logo se esfumaram. O poder econômico, a ganância, a crueldade e a frivolidade humanas berraram mais alto que as focas canadenses. Insensíveis ao morticínio das focas (e também de chincilas, visons, zibelinas e outras cobiçadas formosuras do reino animal), surdas ao argumento de que só os esquimós deveriam poder sacrificar os animais de seu hábitat e às evidências de que os casacos de pele sintética aquecem melhor o nosso corpo, madames do mundo inteiro continuaram alimentando o que alguém batizou, com muita propriedade, de "luxury porn". Pois é de fato pornográfica a fátua suntuosidade exibida por um casaco de pele animal. A agência de notícias Reuters divulgou, na quarta-feira, uma foto parecida com aquela estampada há 40 anos no Daily Mirror. Local do massacre: uma ilha de Cabo Breton, na província canadense da Nova Scotia. O Ártico canadense é o paraíso dos caçadores de peles, cuja disposição para o extermínio merecia um estudo antropológico e psicanalítico. Além, é claro, de uma punição à altura das torturas que inflingem aos mamíferos polares. A essa altura, boa parte dos 275 mil bebês-focas "liberados" para o abate pelo governo canadense já terá sido trucidada. Para aplacar a fúria dos ambientalistas, um pau-mandado do premier Stephen Harper "esclareceu" que a matança não teria impacto no meio ambiente. Ora, igual ressalva poderia ser usada para aplacar a indignação suscitada por um eventual assassinato do secretário do Meio Ambiente canadense - que, aposto, jamais presenciou um massacre de focas ou de qualquer outro animal vitimado pela perversão humana. Das focas o homem não cobiça apenas a pele, mas também os órgãos genitais, uma especialidade da África do Sul, onde milhares de bebês-focas já foram mortos a pauladas na praia de Port Nolloth, no oeste do país. Com que objetivo? Saciar a supersticiosa e patológica demanda de afrodisíacos no Oriente, o maior mercado do que poderíamos chamar de "impotence porn", pois também é para lá que se exportam, com igual finalidade, chifres de rinocerontes, testículos de macacos e outros falsos elixires, contrabandeados por caçadores inescrupulosos. Enquanto as foquinhas eram massacradas na Nova Scotia, chegava às livrarias americanas um livro de cortar o coração: a biografia de Nim Chimpsky. Outra vítima da insensatez humana. Escrita pela jornalista Elizabeth Hess, Nim Chimpsky: The Chimp who Would Be Human, conta a história de um chimpanzé induzido a se achar um ser humano. Seu calvário começou nos anos 70, quando um professor da Universidade de Colúmbia, Herbert Terrace, resolveu desafiar a tese do lingüista Noam Chomsky segundo a qual os animais são fundamentalmente incapazes de entender a linguagem dos humanos. Raptado, ainda bebê, dos braços da mãe, Nim foi entregue aos cuidados do casal LaFarge, que, durante 18 meses, o criou, em Manhattan, como a um filho único: muito paparico, roupas finas, verão em East Hampton. Nesse período, ele aprendeu a distinguir 125 palavras. Extremamente carinhoso, quando via a mãe adotiva chorar, levava-lhe um lenço de papel. Embora ricos, os pais adotivos de Nim não pensaram duas vezes quando os subsídios de um fundo de pesquisa foram suspensos. E o chimpanzé foi devolvido ao mundo animal. Nim, porém, não estava acostumado a ser um primata. Sua reintrodução no convívio com outros chimpanzés foi dilacerantemente traumática. Vítima inocente de uma experiência científica irresponsável, ele quase enlouqueceu. Não li o livro, apenas trechos, na internet, e um comentário na revista eletrônica Salon, acompanhado de uma entrevista com a autora. Com orgulho confesso que, ao saber que Nim, já velhinho, passava horas contemplando, cheio de melancolia, uma foto de seus pais adotivos, chorei feito gente grande - que é como sempre choro quando exposto a qualquer forma de sofrimento imposto aos animais pela criatura mais predadora e destrutiva sobre a face da Terra, o tal de Homo sapiens. Quando leio, e leio muito, sobre o possível aniquilamento de várias espécies animais, ou sobre as crueldades cometidas com cães, gatos, coelhos e outros bichos pela indústria de cosméticos e até pela automobilística (os laboratórios da GM testavam a segurança de seus carros matando, inutilmente, milhares de cachorros, coelhos, porcos, doninhas e camundongos), ou sobre o bárbaro confinamento a que vacas, galinhas, coelhos e porcos são submetidos pela agroindústria alimentícia, baixa em mim um sentimento de inexcedível repulsa pelos meus semelhantes. Especialmente por aqueles boçais armados de porrete; por aqueles inconscientes enfatiotados em casacos de pele; por aqueles sádicos metidos em imaculados jalecos, sempre bolando "experiências" para engordar seus fundos de pesquisa. A propósito, este ano também se comemora o 30º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Animal. Aprovada pela Unesco, ela dispõe que: "1) Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência; 2) O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando esse direito e têm obrigação de colocar os seus conhecimentos a serviço dos animais; 3) Se a morte de um animal for necessária, deve ser instantânea, indolor e não geradora de angústia". Seguem-se mais 11 artigos. Todos rigorosamente ignorados. E não apenas nas geleiras do Canadá.

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