Sem noção

Padre Adelir de Carli - Pároco se perdeu no mar depois de içado por mil balões; Ele teimou que, mesmo sob tempo fechado, chegaria em 20 horas ao destino. Enganou-se

PUBLICIDADE

Por Monica Manir , de Paranaguá e Paraná
Atualização:

Pra cima! Up! Up! Arriba! Voilá! O padre Adelir voou. E depois de 3 minutos desapareceu por completo na nuvem espessa que cobria sua base de lançamento para se tornar o brasileiro mais procurado da costa leste e o mais comentado em sites internacionais na última semana. Embaixo, a devota comunidade do Jardim Iguaçu, na cidade portuária de Paranaguá, não tinha essa amplitude toda. Apenas torcia o pescoço sob guarda-chuvas e sombrinhas à procura do pároco. Alguns bem que perguntaram se não era o caso de deixar o evento para um domingo de céu aberto. Nem era dia de nada! Mas o bicho foi teimoso que só. Assim que sete, oito homens fortes soltaram as cordas que o prendiam ao solo, padre Adelir fez com a mão em nome do pai e do filho, mas poucos viram o espírito santo. Sumiu. A idéia de subir preso a mil balões de festa não teria sido inspiração divina, mas obra da internet, onde ele registrara a imagem de um americano que subiu aos céus sentado numa poltrona. Era Larry Walters. Em 1982, Larry amarrou 42 balões de hélio ao móvel para ver o que acontecia. Arremeteu-se a 16 mil pés (quase 4.900 metros) e não morreu por milagre. Como não tinha altímetro confiável, perdeu o posto no Guinness para o britânico Ian Ashpole, que alcançou meros, porém oficiais 11 mil pés, ou 3.350 metros. Em 13 de janeiro deste ano, o Guinness subiu à cabeça do padre Adelir. Encasquetado com a idéia de que podia passar do teto inglês, chamou um grupo e tomou o rumo de sua cidade de criação, Ampére, no sudoeste paranaense (a cidade natal é Realeza, também no sudoeste). Perdida num gramado verde, em dia claro e límpido, sua cadeira inflável, com ele dentro, foi içada por 500 balões a uma altura de 5.337 metros. Quatro horas e 15 minutos depois, ele descia em San Antonio, território argentino, a 110 quilômetros de Ampére, furando as bexigas gigantes com estiletes. Hosana nas alturas! Padre Adelir estava bem. A empreitada, alegava ele, não era para se aparecer, mas para botar holofote na Pastoral Rodoviária, projeto que encampou em 2004, um ano depois da ordenação. Ou seja, aos 36 anos de idade. "Homem de vocação madura", como classifica padre José Messias, seu reitor no Seminário Diocesano Senhora do Rocio, em Campina Grande do Sul (PR), padre Adelir já pendia a solidariedade aos caminhoneiros. O interesse viria, principalmente, do passado como administrador de postos de gasolina da família. Paranaguá, sede do sexto maior porto do mundo, o segundo do Brasil, era terreno adubado para a missão. Recebe cerca de 4.500 caminhões por dia, num ruído de lona de freio de enlouquecer os cachorros mais sensíveis, mas de fazer a festa dos homens que rastejam por sobras de grãos à beira da estrada. Padre Adelir chegou sem eira nem beira. "A primeira missa foi rezada embaixo de uma árvore, e sob chuva ainda", lembra Denise Gallas, atual tesoureira da paróquia. O padre conseguiu encabeçar a compra de um terreno à beira da BR 277 - parte dele revendido à Cattalini Terminais Marítimos para a construção de um pátio com 22.302,30 m2 onde cabem, folgados, 200 caminhões. Ladeando o muro do pátio se chega à Casa de Acolhida do Caminhoneiro, ou ao esqueleto dela. São 62.600 m2, 3.400 deles com tijolos à flor da pele, pensados para hospedar 200 motoristas e seus cônjuges (em quartos separados, para a Casa não virar outra coisa), com banheiros à disposição, auditório, três salões de confraternização, secretaria, salas de atendimento psicológico, capela, amplo pátio e bosque para meditação. Ali também vai funcionar a casa paroquial. Atualmente, a residência do padre fica do outro lado da rua de terra, numa casa azul-celeste de portão rangedor. Na garagem cabe um pequeno caminhão-baú, usado para as missas em postos de gasolina e pátios de triagem. O veículo abre a traseira e ali se arma o altar. "Calculo que mais de 90% dos motoristas sejam católicos", contabiliza Ivo Schastai, gerente do posto Locatelli, um dos visitados pelo padre. Como sabe que são católicos? "Porque quase todos tomavam sua cervejinha, quando era permitido vender bebida alcoólica nas estradas, claro", ressalva Ivo. Apesar da fama de carismático, no sentido de carisma mesmo, padre Adelir proibia bebidas etílicas e dança nas suas festas. Dá-lhe guaraná e lua cheia. O pároco tem ainda a fama de aventureiro, no sentido de esportes de aventura. Diz que, para comparecer às aulas da pós-graduação em psicologia e realizar as 45 missas semanais do seu louco calendário, pisa com carinho no acelerador do carro da paróquia. Além disso, toda segunda, dia de folga, libera a adrenalina no montanhismo, no pára-quedismo, na pesca submarina. "Ele se desestressa e a gente se estressa", brinca Denise, num riso meio nervoso. Quem saiu do sério com o padre foi Márcio André Lichtnow, instrutor responsável pelo curso de parapente da escola Vento Norte, em Curitiba, que teve o religioso como um de seus alunos há três anos. "Ele era indisciplinado e não participava das aulas teóricas, fundamentais para se compreender as questões meteorológicas", diz. Num vôo-demonstração para a TV, o padre desobedeceu às orientações indo parar na parte oposta do morro do Boi, em Caiobá, no litoral. "Felizmente ficou pendurado nas árvores", diz Lichtnow. Foi a gota d?água. "Sugeri que deixasse a escola porque aquele tipo de esporte não era para ele." No domingo passado, padre Adelir viu o tempo feio da janela da casa paroquial, mas se manteve firme na fé de que o show tinha de continuar. Estava tudo armado no pátio da Cattalini, com barraquinhas vendendo salgado e bolo. Quem quis pagou R$ 3 pela entrada. A missa, normalmente celebrada às 10 horas, foi marcada para as 8h30, mas atrasou. No fundo do altar, um banner mostrava a figura de São Cristóvão, protetor dos caminhoneiros e padroeiro da matriz, com a mensagem: "Pastoral Rodoviária/Voando para ajudar os que rodam". O povo foi se juntando para encher, com gás hélio, os mil balões, uma leva deles com o nome da Pastoral Rodoviária e o telefone logo abaixo. Vai que uma bexiga caísse na mão de um megaempresário. Alguns balões escaparam da mão da comunidade e foram na direção do mar... Quem tinha força fechava os balões, outros iam amarrando um a um com barbante. Padre Adelir vestiu a roupa térmica com capuz, que lhe permitiria suportar até 10 graus negativos, e por cima colocou um macacão branco. Uma repórter de TV lhe perguntou se não seria teimosia voar com aquele tempo. Ele disse que não tinha problema porque o céu estaria aberto assim que atravessasse a nuvem... Sentou-se na cadeira inflável, munida de lastros d?água, e no pescoço pendurou uma pochete com celular por via satélite e GPS para deslocamento em solo, mas sem a opção de mapa no visor... Também levava 20 litros de água, barras de cereais e cápsulas energéticas. Colocou o capacete. O grupo em terra avisaria quando ele chegasse a Dourados, no Mato Grosso do Sul, dali umas 20 horas, com o Guinness novamente garantido. O recorde, de um americano, é de 19 horas. Chamou quem estava à volta e pediu que rezassem por ele incessantemente até a volta... Não demorou para pedir ajuda. "Graças a Deus estou bem de saúde, consciência tranqüila, tá muito frio aqui em cima, mas tá tudo bem." Por Deus, não estava nada bem. Padre Adelir bateu seu próprio recorde ao chegar aos 5.800 metros numa tacada só, mas, em vez de céu de brigadeiro, encontrou um nevoeiro denso, pois a nuvem que o envolveu era do tipo nimbostratus, que chega a 7 mil metros de espessura. "Ele não tinha visibilidade alguma, precisava se guiar apenas pelos intrumentos", afirma Lichtnow. Os aviões de pequeno porte, que voam mais ou menos nessa altura e se guiam visualmente, certamente não o identificariam. "É uma temeridade, ele poderia ter causado um acidente aéreo", alerta o piloto André Belarmino da Silva, instrutor da Escola Paraense de Aviação (EPA). Enquanto isso, o oxigênio rareava, chovia, e a sensação térmica do padre, considerando a temperatura em solo e a altitude atingida, devia ser em torno de -25°C. Aos poucos os balões perderiam altitude por causa da pressão atmosférica, mas o vento, ao contrário do que ele imaginava, corria no sentido do oceano. Dourados tinha ficado muito para trás. "Eu preciso entrar em contato com o pessoal para que eles me ensinem a operar esse GPS aqui para dar as coordenadas de latitude e longitude, que é a única forma que alguém por terra possa saber onde eu estou." Isso não significa, de acordo com Lichtnow, que o padre não soubesse usar o aparelho, mas o modelo que carregava apontava apenas números, e o mapa era essencial naquela altura do campeonato. A configuração também pode ter mudado e ficado desparcerada com as coordenadas do grupo em terra. "O celular via satélite fica saindo fora da área e, além do mais, a bateria está enfraquecendo." O celular por satélite só chamava no fixo; então a turma da casa paroquial repassava a informação para o resgate, que estava perdidinho da silva. Entenderam que ia para o mar, mas as condições de tempo eram péssimas, com ventos de 65 km/h e ondas de 6 a 9 metros. Suas últimas palavras: "Por favor, venham me socorrer, me mandem resgate". Nos dias seguintes, balões foram sendo encontrados no varejo. Os primeiros perto da praia de Porto Belo, em Santa Catarina, outros mais adiante, a cerca de 50 km de Florianópolis. Um helicóptero localizou vestígios nas proximidades da Penha, mais precisamente em Barra Velha. Navios hidro-oceânicos, helicópteros, embarcação rebocadora da Marinha e um avião fretado pela família continuavam nas buscas. Em terra firme, a CNBB alegou não ter sido comunicada sobre o evento, considerando a atitude do padre um projeto pessoal. A Anac atesta que não há legislação específica para disciplinar uma cadeira pendurada por balões. Até o fechamento desta edição, a comunidade do Jardim Iguaçu é quem está segurando o tranco com incansáveis vigílias, adoração ao Santíssimo e telefonemas assustadores de corpos não identificados boiando por aí. Até a batina do padre, devidamente engomada no armário, disseram ter encontrado no mar. "Só quem não conhece padre Adelir para duvidar que esteja vivo", afirma Denise, a fiel tesoureira. "Deus está fazendo isso para ter mais repercussão", garante Maria do Rosário Lima Mendes, esposa de Rudinei, que voltou das buscas entoando uma homilia mais amena: "Deus dá a vida, Deus tira a vida, mas vamos ter fé". QUINTA, 24 DE ABRIL Buscas aéreas suspensas As buscas aéreas pelo padre Aderli de Carli, em áreas mais distantes da costa no litoral de Santa Catarina, são suspensas. O trabalho da Marinha continuou, com o uso de dois navios, um helicóptero e lanchas. Mas até a noite de sexta-feira, o religioso continuava desaparecido. INSPIRAÇÃO Larry Walters amarrou 42 balões de hélio a uma poltrona. Não morreu por milagre INDISCIPLINA Desobedeceu às instruções e ficou pendurado nas árvores. Teve de deixar o curso INFLEXÃO Disse que a chuva não era problema. O céu abriria quando passasse pela nuvem

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.