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Sem segredos

No Brasil, o sigilo imposto a documentos oficiais contraria a Constituição, enfraquece a democracia e torna ineficiente a administração pública. Mas parece que o poder civil aprendeu bem com as Forças Armadas: manter certas gavetas trancadas evita problemas

Por Lucas Figueiredo
Atualização:

Perdão, leitor. Hoje é domingo, você agora lê o Aliás, provavelmente buscando um respiro em meio a um noticiário que tem se apresentado mais amargo do que de costume, e parou neste artigo. Vá em frente. Mas saiba: falaremos do Brasil – pior, do Brasil atual. E o texto, sou o primeiro a admitir, começa de maneira maçante, com uma citação textual da Constituição. Vamos ser rápidos e acabar logo com isso: trata-se do artigo 5º, inciso 33:

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Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Às vezes, só mesmo recorrendo à Constituição, e entre aspas!, para evocar um pouco de lucidez ao debate. É o que parece ser necessário em São Paulo, onde o governo Geraldo Alckmin, numa medida adotada sem alarde em 2014, classificou acervos do setor de transporte público com o carimbo ultrassecreto, grau de sigilo máximo para documentos oficiais, cujo prazo de validade é de 25 anos. Trocando em miúdos, se o governador não tivesse voltado atrás, o cidadão só iria saber em 2040 os motivos do atraso nas obras do monotrilho da capital, bem como outras questões, banais ou importantes, relacionadas aos trens metropolitanos e aos ônibus interestaduais.

Por favor, volte agora ao trecho do texto constitucional transcrito acima. Os administradores públicos precisam ser lembrados a todo tempo: a transparência no trato da coisa pública não é apenas um direito do cidadão, mas um dever do Estado. No Brasil, contudo, a tradição é o inverso, um ranço profundo e resistente da ditadura.

  Foto: Gil Dicelli

Pouco mais de quarenta anos atrás, no auge da repressão promovida pelo regime militar, as Forças Armadas começaram a microfilmar seus arquivos secretos, já prevendo talvez que no futuro seria necessário buscar um refúgio seguro para dados que contavam histórias de sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver. Apenas entre 1972 e 1973, o serviço secreto da força naval, o Cenimar (Centro de Informações da Marinha), miniaturizou 1.230.213 páginas de seu acervo, sendo 42.777 páginas referentes a “pessoas mortas”. Os 22 rolos de microfilme que reproduziam todo esse material caberiam facilmente em oito caixas de sapato. Esse acervo, que continha informações sobre os combates à guerrilha do Araguaia, por exemplo, nunca foi tornado público, apesar das decisões em contrário da Justiça Federal de Brasília e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sem falar nos esforços mais recentes da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Terminada a ditadura, em 1985, as Forças Armadas assumiram um discurso monocórdio: os arquivos da ditadura teriam sido destruídos em época incerta e sem deixar registro. Como se fosse crível que Exército, Marinha e Aeronáutica tratassem como papel velho que ocupa demasiado espaço no fundo dos armários os acervos referentes aos combates contra a guerrilha do Araguaia. Seria o mesmo que jogar no lixo, para limpar gavetas, a memória da maior mobilização militar desde a 2ª Guerra Mundial, em que mais de 2.000 homens foram empregados em um raro evento de combate real e em uma modalidade de luta ainda mais incomum, a guerra de guerrilhas. Uma memória, no mínimo, essencial para o adestramento da tropa e o aprimoramento das estratégias e táticas de combate e de defesa.

A ditadura terminou em 1985, mas a política de gavetas trancadas, não. Na primeira entrevista coletiva que concedeu como presidente eleito, Tancredo Neves anunciou que não estava disposto a rever os atos das Forças Armadas no regime militar. Segundo ele, inquirir o passado impediria o governo de cuidar do presente.

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O pacto silencioso idealizado por Tancredo (o poder civil não criaria problemas para os militares, e os militares por sua vez não criariam problemas para o poder civil), que pressupunha a ocultação dos arquivos da repressão, foi posteriormente implantado pelo presidente José Sarney (1985-1990) e mantido por Fernando Collor (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994). Em 1995, quando Fernando Henrique Cardoso tomou posse, o governo continuou operando sob a lógica de que certos documentos do Estado deveriam ser mantidos longe do público. Na gestão FHC, a Advocacia Geral da União (AGU) usou de todas as ferramentas possíveis do Direito para impedir (ou, na melhor das hipóteses, para protelar) que a Justiça Federal de Brasília desse ganho de causa às famílias de desaparecidos políticos, que moviam um processo em que pediam a abertura dos arquivos que guardavam informações sobre as circunstâncias das mortes dos guerrilheiros do PCdoB no Araguaia, assim como dados sobre a localização dos restos mortais.

Quatro dias antes do fim de sua gestão, Fernando Henrique baixou um decreto em que prolongava o prazo máximo de sigilo de documentos do Estado e ainda criava a inédita figura do sigilo eterno, válido para papéis carimbados como ultrassecretos. Anos depois, FHC diria que assinou o decreto sem ler o texto.

Com Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência (2003-2010), não foi muito diferente. Em seus oito anos de governo, Lula manteve intocado o decreto que instituíra o sigilo eterno para documentos ultrassecretos. E ainda, por meio da AGU, recorreu duas vezes (e perdeu) da decisão da 1ª Vara da Justiça Federal de Brasília que condenou a União a abrir os arquivos do Araguaia.

A Justiça Federal nunca conseguiu fazer com que a sentença fosse cumprida. Mas Lula foi hábil o suficiente para se livrar da possível pecha de parceiro dos militares na ocultação dos arquivos da ditadura. No final de seu mandato, em 2009, o petista enviou ao Congresso o projeto de lei que criou a Comissão Nacional da Verdade, usando, assim, uma reivindicação histórica de organizações da sociedade envolvidas na luta pelos direitos humanos para “terceirizar” uma responsabilidade que era do governo.

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A sucessora e herdeira de Lula, Dilma Rousseff, extinguiu a figura do sigilo eterno de documentos sigilosos, instituindo o prazo máximo de 25 anos para papeis carimbados como ultrassecretos. Porém, ela não promoveu a abertura das gavetas nas Forças Armadas, apesar dos inúmeros (e bastante sólidos) indícios de que os militares ainda hoje mantêm documentos da repressão em seus arquivos, conforme indicou a CNV em seu relatório final.

A prática sistemática dos presidentes do pós-ditadura de trabalhar pela ocultação dos arquivos da repressão acabou por gerar uma situação absurda. Dentre os países da América Latina que passaram por regimes autoritários, o Brasil é o que tem o maior acervo público da repressão, e ainda em expansão. Dados coletados pela historiadora Mariana Joffily indicam que em 2009 o Arquivo Nacional possuía 11.468.676 páginas de documentos produzidos na ditadura, contra 493.898 em 2005. O expressivo crescimento, de 2.222%, em período tão pequeno é, contudo, apenas uma ilusão. Nas prateleiras do Arquivo Nacional sobram registros burocráticos da ditadura, como fichas funcionais de antigos servidores das Forças Armadas e relatórios sobre temas desimportantes. E são raros os papéis que poderiam esclarecer os casos de graves violações dos direitos humanos.

O poder civil aprendeu com as Forças Armadas que manter certas gavetas trancadas evita problemas. A democracia, é claro, sofre com a pouca transparência das instituições do Estado. E a administração pública perde em eficiência, devido às dificuldades impostas à sociedade para fiscalizar a atuação de agentes do Estado.

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Na quinta-feira, o governador Geraldo Alckmin revogou a decisão que carimbava como ultrassecretos acervos da área de transportes. De fato, a classificação era esdrúxula. Afinal, mesmo nas Forças Armadas são raríssimos os papéis que ganham o mais alto grau de sigilo, normalmente documentos que tratam de temas verdadeiramente sensíveis, como hipóteses de envolvimento do Brasil e de seus vizinhos em conflitos armados, inventários de arsenal de guerra e protocolos de segurança do presidente da República.

LUCAS FIGUEIREDO É JORNALISTA E ATUOU COMO PESQUISADOR DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. É AUTOR DE LUGAR NENHUM: MILITARES E CIVIS NA OCULTAÇÃO DOS DOCUMENTOS DA DITADURA,