Sem vandalismo e sem nostalgia

Especialista diz que a percepção sobre a problemática da terra mudou e o Brasil de hoje carece mais de reforma da Previdência que de reforma agrária

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Por Ivan Marsiglia
Atualização:

A estrutura fundiária brasileira mantém-se essencialmente a mesma, gerando desigualdades e reproduzindo desequilíbrios históricos, apesar dos avanços na legislação e na ampliação dos direitos do trabalhador rural. É o diagnóstico de um dos grandes especialistas em economia agrária do País.

 

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No momento em que a sociedade brasileira assiste a mais um dos intermitentes episódios de violência no campo – com a destruição de milhares de pés de laranja de uma fazenda do Grupo Cutrale por militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que depois justificaram sua ação pelo fato de a empresa estar supostamente instalada em terras griladas da União –, o debate sobre a reforma agrária volta às manchetes dos jornais. E o tema, uma espécie de tabu nacional, a ponto de historiadores atribuírem ao projeto de mudanças no campo defendido pelo ex-presidente João Goulart o próprio golpe militar de 1964, ressurge em contexto democrático, porém ainda acirrando os ânimos.

Para o agrônomo paulistano Rodolfo Hoffmann, de 66 anos, a questão que se coloca é: de qual reforma agrária o País precisa? “Como cidadão, tenho simpatia pela ideia de facilitar o acesso à terra às pessoas que se proponham a cultivá-la”, diz o professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), e professor associado do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Por outro lado, é necessário condenar as invasões e, particularmente, o vandalismo.”

Com pós-doutorados nas universidades norte-americanas de Berkeley e Yale, Hoffmann põe de lado, na entrevista a seguir, velhas ideias sobre o assunto, inclusive as suas próprias: “Em 1964 eu acreditava que as ‘reformas de base’, incluindo a agrária, eram indispensáveis para o crescimento econômico do País. A história mostrou que isso não era verdade”.

Enquanto prepara uma nova edição, atualizada, de seu livro mais conhecido, Distribuição de Renda: Medidas de Desigualdade e Pobreza (Edusp, 1998), o professor defende que as políticas de acesso à terra no Brasil não se restrinjam ao mecanismo da desapropriação – cara e nem sempre eficaz – e sustenta: “Para reduzir a desigualdade da distribuição da renda neste País, uma reforma da Previdência seria mais efetiva do que uma reforma agrária”.

Imagens de militantes do MST destruindo pés de laranja numa fazenda da Cutrale em Borebi, no interior de São Paulo, chocaram o País. No seu entender, trata-se de um caso de polícia ou de política?

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Não é correto associar a ineficiência do sistema de Justiça apenas a um crime praticado pelo MST. A Justiça brasileira se mostrou eficiente na apuração do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes ou da missionária Dorothy Stang? Um crime não justifica outro, mas não tem sentido impor regime de “tolerância zero” apenas ao MST. Cabe assinalar que a eficiência da Justiça não depende apenas do Judiciário, mas também da existência de leis bem elaboradas, nas quais estejam bem claras as penalidades a serem aplicadas a cada tipo de crime. E é óbvio também que uma atitude de leniência do Executivo, diante de abusos, torna ainda mais difícil uma ação incisiva da Justiça.

Com a repercussão negativa das imagens de destruição do laranjal, o MST veio a público dizer que a fazenda da Cutrale estaria em terras ‘griladas’, pertencentes à União, que deveriam estar sendo usadas para a reforma agrária.

Pois cabe à Justiça decidir de quem é a propriedade legal das terras. Há um processo questionando a propriedade legal? A tramitação tem sido retardada por formalismos jurídicos? Bom tema para uma reportagem investigativa.

Como o senhor vê o MST, movimento que completará 25 anos em breve? Acha que ele perdeu a comunicação que tinha originalmente com a sociedade? Deixou de ter apoio da opinião pública? Coopta setores do governo ou é cooptado por ele?

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Eu nunca tive ligação com o MST e o movimento não é tema de meus estudos, ainda que eu procure relacionar a estrutura fundiária com o elevado grau de desigualdade da distribuição da renda no Brasil. Como cidadão, tenho simpatia pela ideia de facilitar o acesso à terra às pessoas que se proponham a cultivá-la. Nesse sentido, na década de 1990 cheguei a participar da Abra, a Associação Brasileira de Reforma Agrária. Posteriormente, achei que ela começou a adotar uma posição excessivamente crítica em relação ao governo Fernando Henrique Cardoso e me afastei. É uma tristeza para o País essa disputa política renhida entre PT e PSDB – partidos que, no fundo, têm várias posições semelhantes. No fundo, Lula não fez tão mais pela reforma agrária do que Fernando Henrique, que era duramente criticado pelo PT, que o acusava de inoperante. Não sei avaliar se, ao longo dos últimos 25 anos, o MST se distanciou da sociedade, mas me parece que o discurso pela reforma agrária antes somava mais apoios. E, de toda forma, é necessário condenar as invasões e, especialmente, o vandalismo.

Um artigo publicado recentemente pelo senhor demonstra a permanência da desigualdade na posse da terra no Brasil. Por que esse quadro se mantém?

Sim, conforme dados coletados pelo IBGE no Censo Agropecuário de 2006, os estabelecimentos com menos de 10 hectares ocupam apenas 2,4% da área de cultivo no Brasil, ao passo que os estabelecimentos com 1.000 hectares ou mais ocupam 44,4% dela. Esses números já seriam suficientes para provar que a desigualdade na distribuição da posse da terra tem se mostrado extraordinariamente estável nas últimas décadas.

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Tentativas de se modificar a realidade no campo pouco avançaram?

Eu não diria isso. Embora a desigualdade da estrutura fundiária se mantenha ao longo do tempo, me parece inapropriado dizer que todas as tentativas de mudar esse quadro fracassaram. Hoje há toda uma legislação e órgãos do Estado que, sob fiscalização da mídia e dos sindicatos, garantem ao trabalhador rural direitos praticamente inexistentes há meio século. É notório que a aposentadoria do trabalhador rural, estabelecida em meio salário mínimo no governo militar, que a Constituição de 1988 elevou para um salário mínimo, teve efeitos substanciais na melhoria das condições de vida dos pobres e na redução da desigualdade. Sabe-se, também, que programas de transferência de renda como o Bolsa-Família tiveram efeito benéfico na distribuição da renda na área rural do País.

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Mas, enfim, os resultados do Censo Agropecuário apontam alguma mudança nessa estrutura?

Ocorrem, sim, mudanças na estrutura fundiária. Considere-se, por exemplo, o Estado de São Paulo, onde o índice de Gini da distribuição da terra entre estabelecimentos agropecuários era de 0,758 no Censo de 1995/96 e aumentou para 0,804 no de 2006. O aumento do índice de Gini tem sido erroneamente interpretado como aumento da “concentração” da posse da terra em latifúndios. Se tivesse ocorrido apenas o crescimento dos latifúndios, a área média deveria ter crescido. No entanto, ela caiu de 79,8 hectares para 74,1 hectares. Isso mostra que ele aumentou essencialmente devido ao crescimento do número de pequenos estabelecimentos – com menos de 16 hectares. Coisa semelhante aconteceu no Espírito Santo e em Minas Gerais. O que causou o crescimento do número de pequenos estabelecimentos nesses Estados é algo que precisa ser pesquisado. A mecanização das atividades agropecuárias teria o efeito oposto, pois permite que uma família explore uma área maior. Uma hipótese a ser investigada seria o aumento do número de chácaras para lazer.

Mas o senhor diria que a aposentadoria do trabalhador rural já conseguiu alterar a realidade do campo?

Sim. Mas é importante esclarecer que há dois sistemas oficiais de Previdência: o geral (INSS) e o especial dos funcionários públicos estatutários, que ainda se aposentam com o salário integral. Dentro do sistema geral, as aposentadorias de trabalhadores rurais que não contribuíram para o sistema têm o benefício fixado em um salário mínimo. Há grande número de aposentadorias e pensões nesse valor e um número relativamente pequeno de aposentadorias em valores bem maiores – associadas com cargos públicos de alto escalão. E o que se constata é que o sistema como um todo gera aposentadorias e pensões muito desiguais e, portanto, não contribui para reduzir a desigualdade da distribuição da renda, como acontece, em geral, nos países desenvolvidos.

Ou seja, a aposentadoria rural acaba sendo pouco distributiva...

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Exato. Um aumento proporcionalmente uniforme nas rendas agrícolas iria contribuir para reduzir a desigualdade da distribuição da renda no país. Tendo em vista isso, de um ponto de vista estatístico, sem levar em consideração aspectos jurídicos e políticos, para reduzir a desigualdade da distribuição da renda no Brasil uma reforma da Previdência seria mais efetiva do que reforma agrária. Esse é o tema de um excelente livro, A Previdência Injusta, do britânico radicado no Brasil Brian Nicholson.

Como comparar a estrutura fundiária no Brasil com a de outros países do mundo?

Os países da América Latina se caracterizam, em geral, por apresentar elevada desigualdade tanto na distribuição da terra quanto na distribuição da renda. A desigualdade na Europa é muito menor. Mas parece mais apropriado comparar o Brasil com países de extensão territorial semelhante, como os Estados Unidos, onde a desigualdade da estrutura fundiária também é menor. Há estudos clássicos mostrando os momentos críticos da história que condicionaram essa diferença estrutural. Enquanto no Brasil a Lei de Terras de 1850 dificultava o acesso a esse bem pelo trabalhador livre, indicando a opção da classe que detinha o poder político em favor da consolidação da grande propriedade rural, nos EUA o Homestead Act, de 1862, estabelecia a distribuição gratuita de terras à razão de 160 acres, cerca de 65 hectares, por família.

A problemática da terra sempre foi um tema sensível no País. Historiadores afirmam que o projeto de reforma agrária do ex-presidente João Goulart foi uma das razões do golpe militar de 1964. Como as gerações mais jovens, que não viveram aqueles tempos, veem a questão?

Mesmo não sendo sociólogo ou antropólogo, me parece claro que a percepção do problema da terra se modifica ao longo das gerações, em função das mudanças na estrutura econômica. Para o meu avô camponês o acesso à terra representava a possibilidade de obter a subsistência para a sua família. Já os meus netos estão sendo criados em apartamento, onde nem mesmo a moradia está associada diretamente a uma área de terra. Portanto, tais percepções vão se transformando ao longo do tempo.

Mas a reforma agrária ainda é essencial ao Brasil ?

Essencial para o quê? Em 1964 eu acreditava que as “reformas de base”, incluindo a agrária, eram indispensáveis ao crescimento econômico do País. A reforma agrária seria essencial para dinamizar o mercado interno. A história mostrou que isso não era verdade. No período 1967–1980 houve crescimento econômico rápido associado a um processo de crescimento da desigualdade da distribuição de renda.

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A agricultura brasileira é uma das mais pujantes do mundo e hoje o País disputa o mercado mundial de commodities. Qual é o lugar da agricultura familiar, nesse contexto?

O IBGE divulgou uma análise da agricultura familiar no Brasil, que hoje ocupa 80,25 milhões de hectares – 24,3% da área total dos estabelecimentos agropecuários. O estudo revela que a agricultura familiar apresenta uma produtividade da terra relativamente elevada. Ela representa hoje, por exemplo, 87% da produção de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% da produção de leite, 21% do trigo e 16% da soja. Veja que a soja é um dos principais produtos de exportação brasileiros, mas também é a matéria prima do óleo comestível mais consumido no País.

Qual é a melhor definição de reforma agrária que o senhor conhece?

Lembro o conceito defendido por um de meus mestres, José Gomes da Silva (agrônomo paulista, professor da Esalq e pai de José Graziano da Silva, ex-coordenador do programa Fome Zero no governo Lula e atual subdiretor da FAO, organização das Nações Unidas para agricultura e alimentação), ainda em 1967: “Reforma Agrária é um processo amplo e imediato de redistribuição de renda que se opera na agricultura, com a ativa participação dos próprios interessados, a partir da modificação do sistema de posse, uso e gozo da terra, objetivando a elevação humana, social, econômica e política da população que a trabalha como minifundista, precarista ou assalariada”.

Continuamos distantes dessa definição?

Estamos longe de uma democracia ideal onde todo cidadão teria o mesmo poder na elaboração das leis e na escolha das políticas públicas. Basta acompanhar o noticiário para saber que o poder econômico é muito importante. Mas é claro que isso se aplica tanto ao setor agrícola como aos grandes capitais da indústria e do setor de serviços. Foi notório, também, o poder do lobby dos funcionários públicos resistindo às reformas no sistema previdenciário. Por outro lado, é claro que o interesse público pode em algum momento sobrepujar o interesse de grandes empresas – como mostram as crescentes restrições ao fumo.

Qual seria hoje, na opinião do senhor, um modelo viável de reforma, que fosse inclusivo, provocasse menos traumas sociais e apontasse para o desenvolvimento sustentável?

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Não tenho uma receita. Acredito que devam ser promovidas políticas que facilitem o acesso à terra para os que querem cultivá-la, respeitando as limitações ambientais. A desigualdade no campo não é maior nem menor que a do País em geral: segue o padrão brasileiro. A inércia de nossa herança histórica concentradora faz com que o acesso à terra ainda seja restrito no Brasil. Mas não vejo razão para limitar essas políticas aos assentamentos do programa de reforma agrária, que tem um custo elevado no processo de desapropriação.

Quais são essas alternativas ao alto custo da desapropriação?

Seria preciso colocar tudo na ponta do lápis. Por exemplo: quanto o governo gasta hoje com uma estrutura como a do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)? Quanto custa o processo todo, da aquisição da terra até o assentamento dessas famílias, incluindo a desapropriação, despesas com advogados, etc.? Será que não seria mais produtivo investir esse dinheiro no Bolsa-Família? Ou em um programa de financiamento para aquisição de terra pelo pequeno produtor rural, a juros baixos? Uma medida importante seria aperfeiçoar o imposto territorial rural, tornando-o mais progressivo, para que quem tem mais pague mais do que quem tem menos. E, em muitas áreas deste imenso país é necessário um processo de regularização da propriedade legal das terras. A escolha racional de políticas públicas exige que sejam avaliados tanto os seus benefícios como os seus custos. E aí estou cometendo o velho vício acadêmico: propor mais estudos e pesquisas.

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