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Senhora Luz

Dorina Nowill, Pioneira da educação para cegos no Brasil

Por Flavia Tavares
Atualização:

Enquanto fala, Dorina te olha no olho. Ela não te vê, sequer te imagina. Você é uma voz escondida atrás de uma cortina cinzenta, coberta de pirilampos, que apagam e acendem, apagam e acendem. Mas, cega desde os 17 anos, Dorina, hoje com 89, se obrigou, "por educação", a aprender a mirar seu interlocutor. A ouvir atentamente entonações, movimentos, silêncios. Aprendeu também, como tantos outros, a ler e a escrever em outro conjunto de códigos, o braile. E visionou um mundo de inclusão social para os deficientes visuais, criando a Fundação Dorina Nowill para Cegos, há mais de seis décadas. Poderia ser fácil para Dorina falar da cegueira como uma condição penosa. Ela perdeu a visão repentinamente. "Eu assisti a minha hemorragia. Parecia sangue escorrendo num vidro." Foi levada de médico para médico, numa romaria que lhe rendeu duas operações de sinusite e uma na garganta, um jejum de carne e meses de repouso, tudo em vão. Até hoje não sabe o que causou sua cegueira, apesar de já ter sido caso de estudo em congressos de oftalmologia no mundo todo. Sofreu para reaprender a andar, comer, localizar-se no espaço - e rezava fervorosamente para a Nossa Senhora de novembro, a da Medalha Milagrosa. "Não recebi um milagre, mas nunca deixei de acreditar. Não é porque o milagre não aconteceu para mim que ele não possa existir, né? É muita presunção achar isso." Naquela época, não havia livros em braile em grande escala no Brasil e livros eram justamente sua maior paixão, desde os quatro anos, quando aprendeu a ler e se emocionou com uma compilação de histórias infantis intitulada Eu Sei Ler. Acontece que Dorina não é de drama. Defende a crueza em detrimento da ilusão. Não tinha livros especiais para estudar quando foi a primeira aluna cega a se matricular numa escola comum em São Paulo? Pois ela mobilizou para ler em voz alta sua lição a mãe, as colegas, a arrumadeira - que acabou por se tornar enfermeira com a formação compartilhada. Convenceu a direção da Escola Caetano de Campos, onde estudava magistério, a implantar o primeiro curso de especialização de professores para o ensino de cegos, em 1945. No ano seguinte, com oito amigas, criou a Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Viajou para os Estados Unidos, com uma bolsa de estudos do governo americano, e fez um curso de especialização em educação especial na Universidade de Columbia. "Ser cego não é uma maravilha, óbvio. Mas temos reglete, máquina de datilografia, tablado para cálculo, é bastante coisa. Não corresponde ao que o vidente tem, mas é uma realidade que já traz satisfação." Esses instrumentos são os básicos para quem lê e escreve em braile. Neste ano, aliás, celebra-se o bicentenário de Louis Braille, criador do código, que nasceu em 4 de janeiro de 1809. Por conta disso, foi instituído o Dia Nacional do Braile, que será o 8 de abril, em homenagem a José Álvares de Azevedo, patrono da educação para cegos no Brasil. Outras ações foram articuladas para comemorar o francês: a Biblioteca Louis Braille, criada por Dorina em 1947, que hoje funciona no Centro Cultural São Paulo, foi reinaugurada no dia 24 de janeiro, mais bem equipada depois de uma parceria com a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida. DE OLHOS ABERTOS Junto com o Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, a Fundação Dorina Nowill é uma das pioneiras no Brasil na produção de livros em braile, na distribuição gratuita dessas obras para deficientes visuais em todo o País e no desenvolvimento de técnicas mais modernas para que o cego consiga ler de diversas formas - como com livros falados e vozes sintetizadas no computador, por exemplo. A biblioteca da fundação tem um acervo de 964 títulos e alcançou, em 2008, a média de 1.380 empréstimos mensais. O campeão de retiradas é A Menina que Roubava Livros, de Markus Zusak, mas aqui quase todo mundo retorna as obras no prazo de um mês. A editora, que é uma das principais fontes de renda da fundação, produz 80% dos livros do Ministério da Educação para deficientes visuais e encomendas especiais de cardápios para restaurantes, instruções de segurança de companhias aéreas, bestsellers, etc. Em 2008, foram 202 novos títulos em braile, que são distribuídos diretamente para as escolas ou para as editoras e os parceiros que fizeram a encomenda. O estúdio de livros falados transformou em áudio 189 títulos no ano passado e recebe pedidos de cegos cadastrados para cópias únicas de uma obra, gratuitamente - a biblioteca circulante de livro falado tem um acervo com mais de 859 títulos. Há ainda um serviço de transcrição de livros em braile que não estejam no catálogo da fundação. O cego cadastrado pede, a fundação transcreve gratuitamente e envia a obra pelo correio. Por fim, o Livro Digital Acessível (Lida) oferece para universitários e profissionais programas de computador que leem a obra com uma voz sintetizada, além de disponibilizar outras ferramentas de análise do texto. O usuário com visão subnormal também pode ver o conteúdo em até cinco níveis de ampliação de tela. Já foram produzidos livros nas áreas de direito, psicologia, pedagogia, filosofia e dicionários . Tocam esse projeto 171 funcionários, dos quais 30 são deficientes visuais, e mais 200 voluntários, que fazem também o atendimento de cerca de 1,5 mil pessoas, que recebem consultas médicas, lições sobre como usar a bengala, cozinhar e ler e escrever em braile, claro. "Sabe, o Brasil não está tão atrasado na questão da inclusão do cego. Já temos muita coisa e um futuro promissor a nossa frente. O problema é que aqui tudo é conseguido com muito esforço, principalmente na parte financeira", explica Dorina. DE OLHOS FECHADOS Ela transformou sua deficiência visual em trabalho - e, enquanto isso, criou cinco filhos: Cristiano, Denise, Dorininha, Márcio Manuel e Alexandre. "Confesso que às vezes a comida entrava pelo nariz", diverte-se. Na hora de cuidar da filharada, tentou se adaptar ao máximo para não exigir demais das crianças pelo fato de ser cega. A lição foi bem aprendida e os pequenos, arteiros que eram, passaram até a aprontar com a dificuldade da mãe. Quando Dorina confeccionava um de seus premiados tapetes de lã, num ousado projeto de dez cores, mantinha cada novelo em um saquinho diferente, catalogado em braile. Os danados trocaram a lã de lugar e ela teve de refazer 50 voltas do tapete. Foi uma conhecida da loja que avaliava seu trabalho para alertar sobre possíveis erros que a avisou: "A senhora está com um pedaço aqui todo atrapalhado". Ao lembrar, ela ri seu riso emoldurado em um batom rosa-choque: "Para eles, aquilo foi uma felicidade. E eu nunca me ofendi com essas brincadeiras". A tal crueza que Dorina tanto defende dá lugar à poesia quando ela tenta explicar o que enxerga do mundo. "Às vezes, eu vejo o rosto de uma criança rindo. Mas não é que a imagem se forme na minha cabeça, não vejo um desenho. Eu sinto. Sinto na minha imaginação." Isso acontece também com o pôr-do-sol, de que ela morre de saudade, e com certas flores de que gosta. Em seus sonhos, ela vê as pessoas exatamente como as percebe, "o que pode não ter nada a ver com quem elas são de verdade". Dorina lamenta não ter visto seus pais envelhecerem, mudando de fisionomia, e não ter visto o rosto dos filhos. "Não é uma coisa que me perturba, porque sou tranquila nesse ponto. Mas é claro que eu gostaria de ter visto mais." O que impressiona mesmo são as coisas que ela acerta. Como na vez em que descreveu a cabeça de seu acupunturista, "oval nas duas pontas", e ele confirmou. Ou quando pediu à empregada um sapato azul que estava guardado há tempos no armário, porque ele combinaria perfeitamente com seu novo vestido - azul - e a moça ficou espantada ao ver que, de fato, era uma combinação perfeita. Ou ainda como na vez em que quase matou uma aluna de susto ao gritar: "Tira a mão do queixo, levanta a cabeça e olha para mim!". Dorina dá gargalhadas ao contar essa história, mas logo volta a pôr nossos pés no chão. "Foi pura casualidade, não tem nada de magia nisso. É por isso que eu digo para as professoras que a primeira coisa que elas têm de fazer com a criança cega é ensinar a perceber." Agora, Dorina é a presidente emérita da fundação que criou e ainda comparece às reuniões do conselho, sempre de cabelo escovado e roupas elegantes. Está decidida a aprender a usar o "raio do computador" e, nessa expressão, confessa suas dificuldades. Só que Dorina é assim. Não quer aprender porque é cega e nem tem dificuldades porque é cega. Quer aprender porque todo mundo precisa usar computador hoje em dia e ela também há de precisar. E porque, nas suas conversas com Deus, parou de pedir por milagres. Pede apenas para morrer aprendendo.

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