Sina da primeira vez

Não por acaso, Francisco apareceu no balcão da Basílica vestido apenas de branco, sem púrpuras, ouros ou emblemas de nobreza

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Por Juan Arias
Atualização:

É reconhecida a força dos gestos e dos símbolos, às vezes mais eloquentes do que as próprias palavras. Por isso, o novo sucessor de Pedro, o papa argentino, que escolheu o significativo nome de Francisco, chega ao pontificado com várias novidades que o precederam como cardeal, todas elas perpassadas por símbolos.Em meu blog no jornal El País, Vientos de Brasil, chamei Francisco de o papa "da primeira vez", porque sua biografia está repleta de atitudes até agora inéditas em um cardeal da Igreja, como a sua simplicidade no vestir, o hábito de usar, até agora na Argentina, os meios de transporte públicos, de cozinhar para si próprio, e sua presença nas favelas.A importância do fato de a Igreja, contra todos os prognósticos, ter escolhido, depois de doze séculos, o primeiro papa não europeu, já é um gesto que quebra um tabu importante. A partir de agora, as portas estão abertas para um papa de qualquer parte do mundo no futuro. E ter começado a ruptura deste tabu secular com um papa das Américas, reveste-se de dupla importância, pois este é o continente chamado da esperança, não só para a fé católica, mas também para a fé cristã em geral. De fato, a segunda força religiosa mais importante no continente é a das igrejas evangélicas ou protestantes que não deixam de ser cristãs, embora separadas por motivos teológicos e históricos do passado.Igualmente significativo foi o gesto dos cardeais ao escolherem, no meio do vendaval que sacode a hierarquia do Vaticano com seus escândalos de dinheiro, sexo e intrigas, chamados pelos jornalistas italianos de "noite das facas longas", não um dos cardeais comprometidos com a Cúria Romana, mas alguém de fora e até mesmo crítico desta.Foi a demonstração de que o duelo travado no Vaticano, cujos mistérios ainda não decifrados levaram à renúncia de Bento XVI, tem como único perdedor a Cúria, e como vencedores os cardeais da periferia do mundo, que queriam um papa não comprometido com os jogos de poder romanos, um papa profundamente religioso, e mais comprometido com os pobres do que com os poderosos.Já está sendo estudado este simbolismo de um jesuíta, que representa a educação das elites da sociedade e o compromisso com a cultura e a ciência, e que quis tomar o nome mais simbólico de Francisco, patrono dos franciscanos, a outra grande Ordem religiosa da Igreja, sempre mais próxima das pessoas comuns e dos mais esquecidos da sociedade.É como se o novo papa jesuíta quisesse fazer a síntese das duas grandes correntes religiosas da Igreja. E pensasse que, do mesmo modo que Francisco de Assis, no século 12, foi chamado com sua opção pela pobreza a restaurar uma Igreja sacudida também naquela época por escândalos de intrigas entre os cardeais e arrebatada por pompa e riquezas, ele foi chamado para "restaurar" o Vaticano de hoje, envolvido em ações pouco evangélicas que escandalizam os fiéis.Resta ver se o cardeal "da primeira vez", continuará agora, como papa, abrindo novos caminhos igualmente inéditos, prosseguindo em sua linha de gestualidade simbólica. Na realidade, já o demonstrou na tarde em que apareceu ao balcão da Basílica de São Pedro, onde, pela primeira vez, o novo papa estava vestido apenas de branco, sem púrpuras e ouros, sem emblemas de nobreza.Pela primeira vez, ele começou não abençoando os fiéis como Vigário de Cristo, mas pedindo a todos os que o aplaudiam que rogassem a Deus para abençoá-lo. Nunca um papa fez isso antes.E foi a primeira vez que o papa, em suas primeiras palavras, se apresentou como "bispo de Roma" e não como papa, como sempre fizeram os seus antecessores esquecidos de que ser papa significa ser o sucessor, em Roma, do apóstolo Pedro, um "primus inter pares", não o maior, com poder sobre os outros bispos, mas como o irmão mais velho, sucessor do apóstolo mais ancião, Pedro, o pescador da Galileia. Agora, o papa Francisco que chegou ao papado com seu magro alforje de peregrino de Cristo, carregado de gestualidade simbólica, poderá continuar durante o seu pontificado ainda por estrear, realizando novos gestos de abertura.Poderá, que em Buenos Aires deixou o arcebispado para ir morar em um apartamento simples, deixar de viver nos Palácios Vaticanos e mudar-se para um bairro simples de Roma, algo que João Paulo I quis fazer, mas não teve tempo de pôr em prática, porque os representantes da Cúria de então, que não eram favoráveis a ele, o "morreram" após 33 dias de pontificado.Poderá, se não andar a pé como fazia pelas ruas de Buenos Aires, deixar de usar carros blindados e perder o medo de que alguém possa atentar contra a sua vida. Jesus nunca se defendeu, andava a pé e foi morto aos 33 anos. Acaso a Igreja não se fundamenta no sangue dos mártires?Poderá também abrir as portas para permitir que a mulher chegue ao sacerdócio, uma vez que a Igreja é a única instituição do mundo democrático que persiste em discriminar esta protagonista do cristianismo primitivo.E o papa Francisco poderá abrir uma nova página no ecumenismo hoje bloqueado pela intransigência da Igreja que se apresenta à mesa de negociações com as outras religiões como a única possuidora de toda a verdade revelada.A personalidade do papa Francisco, que já dialogava de igual pra igual com os outros credos enquanto cardeal, poderá levá-lo a abrir uma nova página na união de todos os crentes numa cruzada em prol da paz mundial, da condenação das injustiças sociais e da defesa da dignidade humana independentemente de raça, cor ou fé.Será este um sonho ou uma esperança? O tempo dirá.   TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLAJUAN ARIAS É JORNALISTA, ESCRITOR  E CORRESPONDENTE DO JORNAL ESPANHOL , EL PAÍS NO BRASIL

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