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Só Obama salva

Apesar do pastor, o democrata tem potencial para fazer da corrida americana o que ela prometia ser

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Parecia uma grande eleição, não parecia? E uma barbada para os democratas, certo? Parecia. Ficou (ou está ficando) miúda, mesquinha. Nas grandes eleições, candidatos e eleitores concentram sua atenção nas grandes questões do momento, nos chamados problemas cruciais; conscientizam-se de que é hora de mudar o rumo do país, um "turning-point". Assim foi em 1932, 1968, 1980 e 1992. Assim prometia ser em 2008, com representantes de três minorias - uma mulher, um negro e um defensor da ocupação do Iraque - disputando a sucessão do pior presidente americano de todos os tempos, em meio a uma grave crise econômica, tão ou mais grave que as demais propiciadas pela era Bush. Mas os empolgantes debates prometidos não se concretizaram. Os problemas cruciais (debacle do setor imobiliário, esgotamento do atual sistema de saúde, desvalorização do dólar, desemprego, escassez de energia, inflação, recessão, guerras no Afeganistão e Iraque) acabaram preteridos por questiúnculas de republiqueta, futricas partidárias, polêmicas apelativas e escândalos artificiosos. Até agora, o único momento empolgante da campanha foi aquele discurso de Barack Obama na Filadélfia. Como os telenoticiosos noturnos se dedicaram, nas últimas semanas, a fustigar o candidato responsável pelo único momento de grandeza da campanha, encadeando críticas e acusações ao senador disparadas por Hillary Clinton e John McCain, eu me pergunto se a mídia não estaria contribuindo de forma decisiva para amesquinhar as eleições e evitar que os EUA tomem outra direção. Quanto mais medíocre e movida a baixarias a campanha ficar, mais fácil para os republicanos orquestrarem a sua pelo diapasão das eleições de 1988 e 2000, atribuindo desmesurada importância aos defeitos particulares do oponente - sobretudo aos defeitos apócrifos, inventados pela malevolência partidária e seus jagunços midiáticos e religiosos. Os primeiros acordes já foram dados. E, se Hillary não chega ser spalla nessa banda, pouco lhe falta. Afinadíssima com McCain, combate Obama como se concorresse pelos republicanos. Na base do vale-tudo. Sua sede de poder mataria de inveja Lady Macbeth. Desmentido seu favoritismo, meteu-se numa missão kamikaze: destruir Obama, mesmo que isso implique a derrota do partido na eleição de novembro. Obsessiva e egoísta, faz parte de seus cálculos políticos entregar a McCain um adversário exaurido, desqualificado por seus pares (ou seja, pelos democratas que apóiam Hillary), frágil o suficiente para ser derrotado - deixando-a como franquíssima favorita à sucessão de McCain em 2012. Hillary insiste que é mais "experiente" que Obama. Este não só prefere vender o peixe da "mudança", do rompimento com o passado, de uma nova América, unida, igualitária e generosa, como duvida que a experiência de uma primeira-dama sirva para os desafios de uma presidência da república. Metida até o laquê numa campanha negativista e fratricida, que só fez piorar seu elevado índice de rejeição, Hillary já confessou que considera McCain "mais qualificado" que Obama para assumir a Casa Branca. Como, a exemplo de McCain, apoiou no Senado a invasão do Iraque, é possível que seu conceito de competência presidencial contenha mais testosterona e húbris do que serenidade e bom senso. A direita se diverte. Quando tudo parecia previamente perdido para os republicanos, eis que o impensável se desenha no horizonte: Bush pode eleger seu sucessor. Não porque McCain seja, de fato, "mais qualificado" (não é, e ainda terá de desmentir os rumores de que colaborou com seus captores na Guerra do Vietnã durante três anos, tema explosivo que há muito teria saído do gueto da imprensa alternativa caso o "herói" de guerra se chamasse Barack Obama), mas porque os candidatos democratas, que antes venceriam o pleito in absentia, podem chegar ao confronto final moralmente em frangalhos. Quem mais perde com a prolongada retaliação interna dos democratas? Obama, claro. A menos que pare de ser cool e principesco, e passe a dar o troco na mesma moeda. Mas isso implicaria mudar radicalmente seu estilo distinto, civilizado, exemplar, de ser político e fazer política, afetando sua credibilidade junto ao seu eleitorado. Poderia descascar os pecadilhos éticos de Hillary, na década passada, mas nem isso talvez ouse para não cair no jogo sujo dos republicanos e enfraquecer o poder de fogo de Hillary numa eventual disputa com McCain. Obama tem escrúpulos e princípios; Hillary, apenas tenacidade e ambição. Crucificaram Obama pelo que disse, recentemente, sobre o eleitorado dos grotões americanos e pelas inconveniências que o reverendo Jeremiah Wright, seu antigo mentor espiritual, andou vociferando em templos, na TV e num clube de imprensa. William Kristol, um dos comentaristas políticos mais reacionários da América, explorou ao máximo a crítica de Obama ao apego dos pobres do interior à religião (usada como válvula de escape às agruras econômicas); no que foi gozado por Andrew Sullivan, para quem Kristol, judeu, deveria abster-se de acusar um cristão de mentir sobre sua fé. Nesse caso, o ataque, de certo modo, fazia sentido, já que fora Obama o autor da observação sobre a religiosidade discutível de certa camada da população, a meu ver procedente, mas sem dúvida danosa do ponto de vista político-eleitoral. Mas a saraivada que o senador levou pelos sermões e invectivas do pastor Wright foi injustificável, como são injustificáveis quaisquer tentativas de se culpar alguém pela falha de um amigo, de um parente, ou mesmo de um mentor. Culpabilidade por associação é uma tática sórdida de difamação. O senador Joe McCarthy fez carreira empunhando essa chibata. Obama procedeu da melhor maneira ao seu alcance, desvinculando-se, com veemência e elegância, do discurso incandescente do pastor. Mas nem assim conseguiu livrar-se de cobranças do tipo "demorou a repudiar o radicalismo do reverendo" e suspeitas do gênero "quem pode assegurar que ele não pensa igual ao pastor?", de resto, descabidas. Muita gente boa, felizmente, não caiu nesse festival de hipocrisia, bigotismo e oportunismo eleitoreiro. Li, na internet, vários comentários a favor da atitude tomada por Obama e alguns outros surpreendentemente irritados com o tratamento virulento e debochado que a mídia e políticos dispensaram ao reverendo. Wright, afinal de contas, disse algumas verdades incômodas sobre o império americano e o secular tratamento dispensado aos negros nos EUA. Por que os evangélicos brancos (Pat Buchanan, John Hagee, esse guru e cabo eleitoral de McCain, e quejandos) podem, impunemente, xingar a Igreja Católica de "meretriz", elogiar Hitler e proclamar que o 11 de Setembro foi um castigo de Deus contra os homossexuais, entre outros absurdos, e o negro Jeremiah Wright não pode dar uma de messias Black Power? Cabe agora a Obama chamar todo mundo às falas. E exortar seus adversários a discutir seriamente os problemas cruciais do país e apresentar seus planos para solucioná-los. Para que a eleição de 2008 possa ser o que prometia.

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