Sob o signo do medo e da hipocrisia

Na arena americana, Hillary evoca a hora do lobo, Obama passa por frouxo e consolida-se a figura da mulher traída, mas estóica

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

O dinheiro pode mover o mundo, como ensinava o mestre de cerimônias de Cabaret, mas é o medo que manipula os cordéis. Foi sempre assim. Desde o primeiro tirano. Calígula adorava dizer que não queria ser respeitado, apenas temido; o que deu a Albert Camus a certeza de que nada é mais desprezível que o respeito baseado no medo. Quando em dúvida ou sem argumentos convincentes, apele para o medo: inspire medo, espalhe o medo. Outra coisa Bush e Obama bin Laden não têm feito desde a derrubada das torres gêmeas. Foi forjando o pânico entre os americanos que Bush engendrou a invasão do Iraque, sacrificou as liberdades individuais mediante atos coercitivos, adotou a tortura como método interrogatório e sentou em cima dos documentos secretos que incriminam sua política repressiva. Há dois sábados, em sua habitual fala radiofônica, Bush voltou a pedir à população que abrisse mão de certos direitos e valores civilizados em prol de um combate mais eficaz ao terrorismo. Na terça-feira, o New York Times condenou, com veemência, o petulante apelo, num editorial intitulado Radio Fear America. Fear quer dizer medo. O pavor disseminado pelo terrorismo e pela paranóia pantofóbica também estão por trás dos entraves, das preconceituosas discriminações e das humilhações praticados pela imigração espanhola e pelo serviço de concessão de vistos para os EUA, da retórica machista & belicista da direita americana, dos discursos políticos em geral. Seu ponto alto, nas últimas semanas, foi o spot publicitário da campanha de Hillary Clinton difundido na internet com o título de 3 a.m. (3 horas da manhã). Antigamente, essa era a hora em que Zé Marmita se levantava da cama para, uma hora depois, sair de casa para o batente, pendurado na porta do trem. Agora, é a hora do lobo, do telefonema assustador, do bicho-papão eleitoreiro. São 3 horas da madrugada. Num típico lar americano, três crianças dormem o sono dos inocentes. De repente, toca um telefone na Casa Branca. "Algo está acontecendo no mundo", informa o narrador. "Vocês, com seus votos, podem decidir quem irá atender essa chamada", prossegue a mensagem. "Alguém que conheça os problemas mundiais, os militares; alguém com experiência em liderar um mundo em perigo" - alguém capaz de assegurar o mais tranqüilo dos sonos a todos os americanos e seus filhinhos. Alguém como... Hillary Clinton. Vestida como se estivesse indo ou voltando de um compromisso social (com colar e tudo), Hillary atende o telefone e, em off, dá o recado: "Eu aprovo este anúncio". Já Barack Obama e John McCain, por motivos óbvios, não o aprovaram. Nem a herética feminista Camille Paglia, que, numa ligeira desconstrução do spot para a revista eletrônica Salon, pôs em dúvida a capacidade de Hillary para uma tarefa que seria mais bem executada por alguém que, às 3 da manhã, estivesse nos braços de Morfeu, repondo suas energias, relaxando os nervos e recuperando seu equilíbrio mental, jamais de vigília workahólica, na mesa de trabalho, "como o agourento corvo de (Edgar Allan) Poe". Pegou mal. E nem original era. (Em sua campanha para sair candidato à presidência pelos democratas, em 1984, Walter Mondale estrelou um spot parecido, porém mais direto e sem pieguices: só ele e o telefone vermelho, que não podia ser atendido por alguém "inseguro, instável e inexperiente". Ex-vice de Jimmy Carter, portanto experiente, ainda assim Mondale perdeu a eleição para o republicano Ronald Reagan.) Na terça-feira, o professor de sociologia de Harvard Orlando Patterson comparou a mensagem subliminar do spot de Hillary ao épico de David W. Griffith Nascimento de uma Nação (Birth of a Nation), produzido em 1915. Modelo de linguagem cinematográfica e propaganda racista, o filme instilava na platéia um temor aos negros de que a Ku Klux Klan muito se aproveitou. Segundo Patterson, implícita no spot estava a pergunta: "E se fosse um negro sem experiência em política internacional que atendesse ao telefonema?" No mesmo dia, na edição online de The New Republic, Sean Wilentz caiu de pau na "interpretação paranóica" de Patterson, numa tentativa, àquela altura, inglória, de impedir que a troca de farpas entre os contendores democratas e seus aliados fosse irreversivelmente tisnada pelo preconceito racial. Pelo machismo já foi. E sua maior vítima tem sido Obama, não Hillary. Primeiro, porque Obama tem evitado negar a aptidão presidencial da adversária com base na fragilidade feminina e clichês do gênero. Segundo, porque caçoar dos democratas e, mais especificamente, de Obama, acusando-os de frouxos pacifistas, de feminizados, tem sido uma constante entre comentaristas e blogueiros de direita, como Glenn Reynolds e John Podhoretz, para citar apenas dois baluartes da invasão do Iraque. Ser homem, para esses machões de gabinete, é demonstrar dureza, ter vontade, obstinação e coragem de iniciar uma guerra. Eles cultuam a testosterona, rufam os tambores, mas só agridem verbalmente. Na hora da guerra, mandam outros em seu lugar. Não foi à toa que ganharam o apelido de chickenhawks, mistura de galinha (chicken) com falcão (hawk); em bom português, falcagões. Tão antiga quanto o medo é a hipocrisia. Ela explica o comportamento dos falcagões e a desdita do governador de Nova York Eliot Spitzer, cujo envolvimento com a prostituta Kristen, née Ashley Alexandra Dupre, michê de US$ 4.300, desgraçou-lhe a carreira política, assaz promissora (elegera-se com 60% dos votos), mas não, aparentemente, seu casamento de mais de 20 anos. Haja vista a irresoluta solidariedade de Silda Wall Spitzer, a esposa traída, onipresente nas aparições e expiações públicas do marido. Num mundo menos fanatizado por tabus morais (desde quando sexo consentido entre dois adultos é crime?), Spitzer só seria recriminado se tivesse dado o beiço em Kristen - e, eis o busílis, se não tivesse sido um impoluto templário contra a prostituição em seu Estado. Com medo de desfazer seu lar, afetar a vida e a psique de suas três filhas e o que mais costuma pesar em situações como essa, Silda não assumiu a tradicional posição de matter dolorosa, mas outra, mais moderna, atualíssima: a de uxor placida, a mulher traída estóica. Silda é a Renilda da vez. Assim como Renilda Santiago, a musa do Valerioduto, Jacqueline Kennedy, Lee Hart (traída pelo pré-candidato democrata à presidência Gary Hart, em 1987), Suzanne Craig (cujo marido, o senador Larry Craig, foi pego passando uma cantada em outro homem num banheiro de aeroporto), e até Cindy McCain (que grudou no marido aos primeiros boatos de que John andara ciscando com uma lobista), Silda optou por "ficar do lado do seu homem", como prega a balada country Stand By Your Man, que Tammy Wynette levou aos píncaros do Hit Parade em 1968, para horror das feministas. Hillary? Se o telefone dela tocar às 3 da manhã, a primeira coisa que ela deveria fazer, depois do alô, seria cantar a balada de Wynette.

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