Soberania fracionada

Para líder socialista, a perda do impulso europeísta, que existiu no passado, põe em cena nacionalismos arraigados e destrutivos

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Por Felipe González Márquez
Atualização:

O único recurso que resta à União Europeia, não apenas face a nossa crise generalizada, mas também para conseguirmos nos inserir na nova realidade global, é mais Europa e menos nacionalismo. Nenhum dos nossos países, grandes, médios ou pequenos, conseguirá enfrentar por conta própria os desafios atuais e futuros. E, se não o conseguem sozinhos, o que devemos fazer para sair desta crise e garantirmos um lugar na nova realidade?

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Como é natural, existem opiniões antieuropeias e antiglobalização que costumam se refugiar em termos nacionalistas ou protecionistas, que acham que temos de ter a liberdade de atuar contra as necessidades prioritárias da Europa ou empregam práticas protecionistas para eludir a questão da falta de competitividade que oprime uma Europa desenvolvida.

Por isso a Europa precisa decidir entre avançar de forma decidida para uma federalização das políticas fiscais e econômicas (além dos aspectos fundamentais da projeção exterior) ou desfazer, a um preço exorbitante, o longo caminho percorrido até a construção europeia. A tentação dominante hoje, de dar passos curtos e tardios que não resolvem problema nenhum, está gerando cada vez mais frustração entre os cidadãos.

A construção de um espaço público comum entre os diferentes países - os da União Europeia e, dentro dela, os da zona do euro - se faz mediante cessões sucessivas de partes da soberania nacional para compartilhá-las com os outros, por meio das instituições comunitárias previamente definidas nos tratados. Os Estados da UE vêm abandonando suas políticas agrárias visando a constituir a Política Agrícola Comum (PAC), e deixando de lado suas relações comerciais com outros países para administrá-las de modo conjunto. Isso não significa perder a soberania, mas compartilhá-la para se conseguir um funcionamento mais eficaz. E assim tem sido feito, não para perdê-la, nem para entregá-la a uma potência estrangeira.

Os 17 Estados da zona do euro renunciaram a suas moedas soberanas para adotar o euro como moeda única, e criaram um Banco Central Europeu dotado de poderes estatutários para elaborar uma política monetária e controlar a inflação.

É necessário lembrar que esse movimento, sem precedentes históricos, nasceu no século 20 como consequência de duas guerras entre europeus que tiveram o "privilégio" de ser consideradas "mundiais". O resultado dessa patologia de confronto destrutivo foi que os seis países fundadores procuraram uma via de entendimento - uma ética de paz e cooperação - cuja base foi compartilhar os elementos (como o carvão e o aço) que provocavam as lutas pelas hegemonias nacionais. Talvez o vazio atual se deva ao fato de termos perdido essa motivação, esse impulso ético de se levantar e, a partir do esforço comum essencial, enfrentar a crise e reafirmar a própria identidade na nova realidade global. Essa perda de memória ou do impulso no sentido de um "europeísmo" é que favorece a avalanche destrutiva de desunião por meio dos nacionalismos.

O processo envolveu um estudo detalhado dos elementos comuns e uma ampliação constante com a adesão de novos países. Dos seis que firmaram o Tratado de Roma chegamos aos 27 atuais, 17 dos quais adotaram a mesma moeda. Quando foi decidido que devia haver uma moeda única e um único Banco Central, nós nos esquecemos de alguns elementos fundamentais para que o sistema funcionasse devidamente. Não é possível uma união monetária com políticas fiscais e econômicas divergentes. Ao negociar o tratado, foi mencionada uma União Econômica e Monetária, mas só desenvolvemos a união monetária, acompanhada de um Pacto de Estabilidade e Crescimento que, segundo se pensava, bastaria para garantir o devido funcionamento da moeda única.

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A crise financeira de 2008 demonstrou que não é assim. As diferentes políticas econômicas e fiscais produziram um "choque assimétrico" entre os diferentes países da zona do euro e intensificaram as consequências negativas da crise. Países que haviam cumprido o Pacto de Estabilidade e Crescimento se viram em situação desfavorável, como a Espanha, que em dois anos passou de um superávit orçamentário de mais de 2% para um déficit de 10% e duplicou sua dívida pública de 37% (menos da metade das da França e Alemanha) para 68,5% em 2012.

Mas, além disso, as limitações estatutárias do Banco Central Europeu o impedem de atuar como o Federal Reserve dos Estados Unidos ou o Banco da Inglaterra. Essas restrições fazem com que o BCE não seja mais que um controlador da inflação, sem ter em conta fatores de crescimento nem de emprego.

Essa dupla incoerência - que os Estados Unidos apoiaram no fim do século 19 - deveria nos fazer compreender que precisamos concluir o Tratado de Roma e introduzir um governo econômico da União. O tratado, ratificado hoje por 25 países, já segue nessa direção, com um compromisso de estabilidade orçamentária e sem se deixar esmagar pelos problemas antes mencionados. Se temos uma moeda única, uma política monetária única, é ilógico termos políticas fiscais e econômicas diferentes.

Mas isso significa implementar reformas que nos permitam criar um governo fiscal e econômico da UE, cedendo um pouco da soberania que vai garantir a ausência de choques assimétricos como os que experimentamos hoje. Não é possível tentar enfrentar a crise com reais possibilidades de sucesso e nos incorporarmos à economia mundial sem mudarmos a direção política atual acertada por todos e colocada em prática por todas as instituições.

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Essa atual direção é equivocada e os processos de tomada de decisão foram impostos pela Alemanha com respaldo da França. Essa "direção", que aborda o problema da dívida sem verdadeiras dívidas, como se fosse um problema de solvência - que não existe, mas pode provocar esse erro -, essa "direção", que esquece os graves desafios do crescimento e do emprego, está nos levando à ruína.

O acordo de estabilidade orçamentária é um objetivo crucial, mas as expectativas de cumprimento são brutais e desnecessárias e provocam uma contração econômica que agrava todos os fatores. As pessoas têm a sensação devastadora de que os acordos estão sendo impostos à força, não são pactos aprovados pelos membros do Conselho Europeu e aplicados por meio das instituições comunitárias.

A situação é muito perigosa para o futuro da UE. O repúdio da população no tocante à construção europeia tem aumentado, os discursos nacionalistas são cada vez mais aplaudidos e não existe um único processo eleitoral nacional que esteja a favor da integração europeia. É a máxima contradição: as eleições são ganhas em função de lutas internas de poder e as maiorias de governo usam as demandas europeias para fazer o contrário do que afirmam seus programas.

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A coesão e a solidariedade, bases do modelo europeu, estão sendo destruídas por culpa de acordos estratégicos que são tão brutais quanto ineficazes para resolver os problemas desta crise. As pessoas repudiam as graves consequências dessas políticas "anticrise" que sabem que não deveriam existir. Necessitamos de um governo fiscal e econômico da UE com uma soberania compartilhada e um funcionamento correto das instituições, mas a política que predomina hoje é equivocada e só servirá para provocar mais nacionalismo e sentimentos antieuropeus.

Não significa que não é necessário realizar reformas para melhorar nossa competitividade e ajustar as contas públicas, de modo a permitir uma sólida aproximação da estabilidade orçamentária.

O grande paradoxo é que precisamos avançar no sentido de um governo econômico da Europa, mas as medidas políticas que estamos adotando provocam um repúdio cada vez maior a esse objetivo necessário e um fortalecimento dos nacionalismos e da união. A UE tem pela frente um caminho muito difícil. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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