Numa resenha anterior elogiei um filósofo marxista. Nesta, exalto um conservador. E daí? Com o mané cavernícola que atualmente habita o Planalto, um incauto poderia extrapolar que todo conservador é um troglodita. Bom, é verdade que grande parte da direita brasileira é simiesca e jeca - mas quem vê pensa que nossa esquerda só tem esteta iluminista.
A picaretagem maniqueísta (como entre cloroquina e tubaína) é um baita pepino numa altura em que consensos construtivos salvariam vidas. A cultura implica o contraditório e o debate de ideias, em vez de clãs aquartelados em trincheiras, espumando o monopólio da verdade infalível e pregando para convertidos. Claro que existem visões de mundo alternativas, mas não é crime discordar – nem nós dos outros, nem os outros de nós. Já dizia Aristóteles que inteligência é “insolência educada”. Diversidade não pode ser só um termo descolado para postarmos nas redes sociais.
Óbvio que não é tudo farinha do mesmo saco e existem o certo e o errado. Mas não me interessam muito pedigrees ideológicos. Não leio apenas profetas das respectivas revelações, mas também os advogados do diabo. Covid não é gripezinha nem aqui nem na China, mas tampouco um pito da natureza no liberalismo. Em suma: quanto todo mundo pensa igual, é porque ninguém está pensando.
Roger Scruton, talvez o mais proeminente intelectual público britânico, morreu em janeiro passado, aos 75 anos. 2019 foi seu annus horribilis: soube que tinha um câncer, e se demitiu do cargo (não remunerado) de consultor do governo de Theresa May, por causa de uma entrevista à New Statesman, na qual suas palavras foram deturpadas. A publicação pediu desculpas, reconhecendo que as citações, “editadas por questões de espaço”, acabaram completamente distorcidas. Mas o estrago estava feito.
Sobre a Natureza Humana (tradução de Lya Luft), de 2017, pode ser encarado como o testamento de Scruton, que era um polímata (Vargas Llosa declarou-o a pessoa mais culta que conheceu). Um enciclopedista, mas nunca superficial – só não se encaixava naquela definição de Voltaire: “Um especialista é alguém que sabe cada vez mais sobre cada vez menos.” O pensador inglês tem obras seminais sobre música (cracaço em ópera), pintura, ecologia (Green Philosophy), vinhos (Bebo, Logo Existo), etc. Para ele, conservadorismo corresponde “ao sentimento de que as coisas boas são facilmente destruídas, mas não são facilmente criadas.”
Não o confundamos com mamutes reacionários. Scruton não queria conservar a Pietà ou o habeas corpus porque vovô gostava deles, mas para que seus netos também os desfrutassem. Conservar o que é do outro que já morreu, para o outro que ainda não nasceu – como diria Edmund Burke e até Greta Thunberg concordaria. Daí, aliás, a simetria entre tantos reacionários e revolucionários, obcecados com utopias que, na prática, foram ou serão distopias. Bolsonaro é um reacionário que saliva por regressar a sua Idade de Ouro: a ditadura militar.
Daí a questão deste livro: “Se não entendemos o que somos, como poderemos defender o que temos?” E se tem um tema universal, é a natureza humana. Scruton começa por aparentemente entregar o outro ao bandido: “Nós, seres humanos, somos animais, governados pelas leis da biologia. Nossa vida e morte são processos biológicos de um tipo que também verificamos em outros animais. Somos influenciados e compelidos por genes com seus próprios imperativos reprodutivos. E esse imperativo genético se manifesta em nossa vida emocional de maneiras que nos fazem lembrar nosso corpo e seu poder sobre nós.”
Scruton está esgrimindo com a psicologia evolucionista (Geoffrey Miller, Daniel Dennett, etc) - para esta, tudo é resíduo de um processo adaptativo através do qual um organismo é programado para se comportar de maneiras que promovam a reprodução de seus genes. Ou seja: ainda mais do que para Freud (e a autora de Cinquenta Tons de Cinza), tudo é sexo.
Só que Scruton é um espadachim nível D’Artagnan, com estocadas certeiras: “Somos criaturas territoriais, como lobos e tigres. Reclamamos nosso território e lutamos por ele; nossos genes, que exigem o mesmo clamor exclusivo sobre o hábitat a fim de garantir sua replicação, dependem de nosso sucesso. Mas, quando lutamos, geralmente é em nome de algum ideal elevado: justiça, liberdade, soberania nacional — até mesmo Deus. Mais uma vez, parece que temos o costume de contar a nós mesmos histórias que não fazem referência alguma às realidades biológicas nas quais se enraízam.”
E os mosqueteiros do filósofo são icônicos, como Alfred Russell Wallace, o australiano que bolou a teoria evolucionista pela seleção natural simultânea e independentemente de Darwin: “Somos dotados de poderes intelectuais e morais supérfluos aos requisitos evolucionários” – assim, tais faculdades não podem ser explicadas por uma seleção natural por aptidão. Aqui cai bem uma citação de Marx (O Capital): “Uma aranha realiza operações que se assemelham muito às de uma tecelã e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a construção de seus favos. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é isto: o arquiteto ergue sua estrutura na imaginação, antes de a edificar na realidade.”
Dawkins postula a existência de “memes” (sim, foi ele que inventou a famigerada palavra), o tal “gene egoísta”, entidades mentais que usam a energia do cérebro humano para se multiplicar, assim como vírus usam a energia das células. Porém, como ressalva Scruton, “nenhuma evidência foi dada por Darwin ou qualquer outra pessoa para pensarmos que memes realmente existem” E a ciência é científica, ou não é.
Scruton lembra que o buraco é mais embaixo: “Ciência não é o único modo de perseguir o conhecimento. Há também um conhecimento moral, território da razão prática; há o conhecimento emocional, território da arte, literatura e música. E existe um conhecimento transcendental, que é o território da religião. Por que privilegiar a ciência? Só porque ela pretende explicar o mundo? Por que não conferir peso às disciplinas que interpretam o mundo e nos ajudam a nos sentir em casa nele?” Não confundir, claro, com o obscurantismo segundo o qual goiabeiras dão cloroquina. Embora cultura não seja ciência, é também uma atividade consciente da mente crítica.
Aliás, a autoconsciência é um dos traços humanos, assim como o riso, a noção de responsabilidade e até o deleite “Sentimos prazer com coisas que não têm nenhum significado evolutivo, como colecionar selos, voleibol, piadas, poesia, brincar com gatos, um bom vinho ou a brisa tépida em nosso rosto.”
Ou, como nada é perfeito, o mal. A caracterização da maldade é resumida na fala do Mefistófeles de Goethe: “Eu sou o espírito que sempre nega.” Nega sobretudo a humanidade alheia. Nos campos nazistas, “os internos eram tratados como coisas, degradados, reduzidos a uma condição de uma necessidade pura. Esses anti-humanos eram repulsivos. Assim, seu extermínio podia ser apresentado como um imperativo, e seu desaparecimento era o equivalente espiritual de uma matéria despencando num buraco negro. Uma vez removida a alma, a destruição do corpo não seria encarada como assassinato, mas uma espécie de controle de pragas.” Como se fosse uma gripezinha.
*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)