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Sofismas da lei

Redução da maioridade penal, malhação do Judas e linchamentos têm por base a vingança coletiva

colunista convidado
Por José de Souza Martins
Atualização:

Na mesma semana do Sábado de Aleluia, em que tradição e barbárie se encontram na malhação de Judas Iscariotes pela traição a Jesus Cristo, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de redução da maioridade penal dos brasileiros para 16 anos. Se passar pelos plenários da Câmara e do Senado, os adolescentes que cometerem crimes graves já não serão beneficiados pelas penas aparentemente brandas aplicáveis aos que não sabem o que fazem. Serão julgados como adultos: se supostamente sabem o que fazem quanto votam, certamente sabem o que fazem quando matam. É o silogismo da lei.

Presidente da Câmara vira Iscariotes em protesto em Fortaleza Foto: CRISTHYANA ABREU

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A questão é mais complicada, sociologicamente falando. A sociedade pós-moderna, que põe nas mãos de quem adulto não é instrumentos de adulto, como drogas e armas de fogo, caracteriza-se por combinar o que de fato não combina. Dota imaturos de instrumentos de poder, como a pistola que mata, mas também o direito de voto, quando ainda estão sob tutela dos pais. O que engana, mas não amadurece.

A redução da maioridade penal acrescenta contradições ao caos de desencontros entre modos de ser que tornam a figura do cidadão, na sociedade brasileira, uma mistura de descombinações. De modo sumário, o Brasil decreta a antecipação da condição de adulto dos imaturos e decreta que adolescente não é mais adolescente para vários e fundamentais efeitos. Livra-se da conta que toda nação deve pagar para formar devida e adequadamente suas novas gerações. Não paga o que deve, a formação do jovem, e quer receber o que não merece, seu trabalho e seu voto, sua renúncia ao direito de ser jovem e de ser protegido.

Ao mesmo tempo, o Brasil não leva em conta que a efetiva entrada na idade adulta vem sendo adiada cada vez mais, não só porque os requisitos para ser adulto se tornaram mais demorados, pois já não basta ter força física para trabalhar e capacidade de procriação para constituir família e entrar efetivamente no mundo dos adultos. É preciso encontrar, antes, emprego estável, salário compatível com as necessidades de uma família recém-constituída, estudar o número suficiente de anos para ter a profissão compatível com esses reclamos da existência. Já foi o tempo do analfabeto e do apenas alfabetizado baratos. A preparação para ser adulto hoje prolonga a adolescência para muito além dos marcos cronológicos que a definiam há duas gerações. O comportamento imaturo de certo número de nossos estudantes universitários, o modo predatório e irracional como se comportam em movimentos de protesto, é um indicativo de que estão se tornando adultos muito mais tarde, com corpo de gente grande e mentalidade de criança. 

A maioridade legal recua para os 16 anos de idade, mas a maioridade real já não é alcançada antes dos 25 anos. Por volta dessa idade, há 60 anos, um homem era consolidado pai de família e uma mulher já não estava muito longe de ser avó. Hoje, muitos nessa idade ainda estão indecisos entre casar e “ficar” e têm sérias dúvidas quanto à conveniência de constituir família. A lei vai numa direção e a realidade vai noutra. 

Argumenta-se que a redução da maioridade penal dissuadirá de delinquir os delinquentes potenciais, isto é, os jovens em maior risco de cair na tentação da criminalidade. No entanto, para que isso funcionasse, seria necessário que a sociedade tivesse, para as novas gerações, uma alternativa de destino. Não a tem. Um dos respeitáveis argumentos do excelente documentário de João Moreira Salles Notícias de uma Guerra Particular é o de que um adolescente no tráfico de drogas pode ganhar em uma semana muito mais do que ganha seu pai em um mês de trabalho. Vale mais a pena correr o risco de viver uma vida curta e boa do que uma vida longa, pobre e sofrida, à espera de uma realização pessoal que não virá. 

A casual coincidência da decisão da Comissão de Constituição e Justiça com a semana em que em todas as regiões do Brasil ainda se faz a malhação de Judas encerra o elemento cultural que move uma coisa e outra. Na malhação estão contidos elementos do arquétipo da violência coletiva frequente entre nós. Ou, sociologicamente, os elementos da conduta de massa do brasileiro em face do medo e da adversidade. A malhação no Brasil vem desde os tempos coloniais. Sintetiza as bases dos nossos preconceitos e é prática folclórica que passa de geração a geração os ensinamentos da vingança coletiva. Nesse sentido, a redução da maioridade penal, a malhação de Judas e os linchamentos entre nós frequentes tem um único feixe de significação. 

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Pode-se dizer que a própria sociedade vai mais longe que o Legislativo na decisão que está tomando: já decidiu pela pena de morte dos delinquentes linchando-os. No país que mais lincha no mundo, que é o nosso, a violência dos linchadores é muito maior quando a vítima é jovem. Mais de um de um milhão de brasileiros participaram de linchamentos nos últimos 60 anos. Na faixa dos menores de idade, 47% dos linchados foram mortos; na dos jovens já maiores de idade, 31% o foram; enquanto 39% de todas as idades morreram. Uma significativa indicação de que esta sociedade devota um ódio particular aos jovens transgressores. Se a antecipação da idade de punição provocasse a diminuição da criminalidade, a ocorrência em média de um linchamento por dia no Brasil já teria tido efeito. O que se vê, porém, é o aumento da criminalidade. O diagnóstico que capeia a proposta de redução da maioridade penal, tudo indica, é equivocado. Existem outros fatores por trás da criminalidade juvenil, que não inocentam nem o Estado nem a sociedade. A mudança da lei criará para muitos o conforto de um bode expiatório.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE LINCHAMENTOS - A JUSTIÇA POPULAR NO BRASIL (CONTEXTO)

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