Sor Juana Inés de la Cruz é tema de estudo de Octavio Paz e série da Netflix

'As Armadilhas da Fé' ganha nova edição no Brasil pela Ubu

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Por Rodrigo Petronio
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Os modernismos e as vanguardas foram norteados por duas preocupações centrais: a reinvenção das tradições e o experimento com a linguagem. Enquanto a pesquisa de linguagem inseria os diversos movimentos em um horizonte cosmopolita, os artistas e escritores alimentavam esse cosmopolitismo com signos oriundos de seus respectivos países, línguas, cidades, etnias, folclore, mitos e religiões. Essa dupla articulação está presente em quase todos os escritores da primeira metade do século 20. E encontrou um solo fecundo no mundo hispano-americano. 

Cena da série 'Juana Inés', da Netflix 

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A Geração de 1927, representada por Gerardo Diego, Pedro Salinas, Damaso Alonso e pelo gênio Lorca, recebeu esse nome em homenagem ao tricentenário de morte de Luis de Góngora y Argote (1561-1627). Proscrito do cânone espanhol e transformado em termo pejorativo (gongorismo), o vórtice de imagens oníricas, a escritura em algaravias e o colorido asiático desse poeta andaluz foram o insumo e a utopia do grupo. Góngora era a ponte entre o hibridismo mourisco da Península Ibérica e o surrealismo que irradiava pelo mundo. 

Na América Hispânica essa urgência era ainda mais patente e implicava também erigir um projeto de contracolonização. Surge no México, entre os anos 1920 e 1930, um grupo de escritores chamado Contemporâneos, reunidos em torno da revista homônima. O que unia poetas como Xavier Villaurrutia, Jorge Cuesta, Carlos Pellicer, Salvador Novo, José Gorostiza era a tentativa de trazer à tona camadas adormecidas das civilizações mesoamericanas, tornando-as contemporâneas do presente. Nesse trabalho de escafandristas culturais, a poeta Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695) foi um dos primeiros nomes que emergiram. Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura (1990), é um herdeiro desse grupo e dessa atmosfera. 

Dono de uma vasta produção de ensaio e poesia, sua obra se inicia com uma investigação sociológica sobre a identidade mexicana (O Labirinto da Solidão, 1950). Aos poucos passa a se arriscar em uma fronteira híbrida entre a filosofia, a antropologia e a semiologia. Em O Arco e a Lira (1950), A Outra Voz (1990) e na antologia Signos em Rotação (1972), propõe uma fenomenologia da poesia e sua ontogênese a partir do mito. O espaço emergente da arte e da poesia adquire uma nova lente antropológica e semiológica em Conjunções e Disjunções (1969), A Dupla Chama (1993) e Vislumbres da Índia (1995). Há também os ensaios sobre autores e obras, como Quadrivio (1965) e Convergências (1991). A tradição do novo e as contradições da modernidade são desenvolvidas em Os Filhos do Barro (1974). 

O estudo de Paz sobre Sor Juana pode ser visto como um eixo de articulação de todas essas matrizes, tanto que ocupou três décadas de sua vida. Paz começou a estudá-la em 1930. Depois de um artigo de 1950, lançou as bases do projeto, decantado e expandido em um curso ministrado em Harvard, e concluído apenas em 1981. Após anos fora de catálogo, a editora Ubu acaba de publicar Sor Juana Inés de la Cruz ou as Armadilhas da Fé, obra-prima da historiografia e da antropologia da literatura. Uma das maiores poetas e pensadoras do século 17 e um dos maiores poetas e pensadores do século 20 se encontram e se espelham. Iluminam-se.

Oportunamente, este ano a Netflix também estreou a primeira temporada de Juana Inés. Criada por Patricia Arriaga-Jordán, com elenco composto por Arcelia Ramírez, Lisa Owen, Arantza Ruiz e Hernám del Riego, é inspirada na vida da poeta e mostra Juana como a primeira feminista da América. De fato, Juana foi uma das autoras mais eruditas e uma das mulheres mais emancipadas de seu tempo. Desde cedo recusou o caminho do casamento e da vida palaciana. Preferiu encontrar na religião a sua liberdade interior e o cultivo das letras e artes. Possuía uma das maiores bibliotecas pessoais do Império Mexicano. Além de estudar os clássicos antigos e medievais, o grego e o latim, era versada em teologia, filosofia, astronomia, conhecedora de saberes proscritos pelo cânone católico.

Juana teceu assim, fio a fio e verso a verso, uma das obras mais singulares da língua espanhola. Diversas centenas de páginas que recobrem teologia, filosofia, dramaturgia, poesia, traduções, cartas e exegese da Bíblia. Paralelamente à vida intramuros, Juana também protagonizou algumas mudanças significativas dos costumes. A série sugere relações homoeróticas. E aqui adentramos a difícil demarcação da esfera da sexualidade, abordada por Paz, em especial no capítulo A Cela e suas Ciladas

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A descrição da sexualidade é ambígua. E o interessante é que Paz faz questão de sustentar essa ambiguidade, em meio a aspectos licenciosos e uma atmosfera de erotismo. Descreve os mosteiros como pequenas repúblicas, com celas individuais com banheira. Estima que vivessem 200 mulheres por convento. As monjas não saíam, mas recebiam visitas. Não havia separação por meio de grades, e às vezes elas compartilhavam a mesma sala com as visitas. Nas festas religiosas, recebiam parentes, pregadores, teólogos, cortesãos e seculares. Por fim, Paz analisa os sonetos de Juana a Laura (Leonor Carreto, marquesa protetora) e a “amizade amorosa” que sentia por ela. Um dos três sonetos termina com uma imagem hiperbólica e um pouco blasfema: a alma “necessita de todo o céu para não sentir falta do corpo em que vivia”. 

Haveria na Nova Espanha uma vivência bipolar sexo-morte. Mesmo relatos de mortificação das freiras trariam forte teor libidinal. O ascetismo seria apenas outra face da licenciosidade. Como em todas as civilizações, a sexualidade e a morte lutaram na Nova Espanha, hipótese que Paz trabalha em outras obras. Esse combate com frequência foi mortal. Não por acaso, o século 17 na Europa é o século dos libertinos paradoxais, do padre ateu Meslier e do materialismo religioso de Gassendi e de La Mothe Le Vayer. Na Nova Espanha, o diálogo entre o signo do corpo e o do não-corpo teria assumido uma forma encarniçada, voluptuosa e cruel. 

O ensaio de Paz é brilhante justamente porque subverte um gênero de abordagem convencional: a biografia. Não repete o conhecido cotejamento vida e obra. Entrega-se àquilo que Leo Spitzer chama de círculo hermenêutico: parte de um detalhe, eleva-se às estruturas e formas mentais da época, retorna às partes significativas. Outra referência conceitual importante é à história das mentalidades e à antropologia histórica. Essa abordagem possibilita uma microscopia dos poemas, dos modos de vida e das crenças, dando ao leitor um mosaico dinâmico da América Hispânica. A teologia política imperial, a organização da Corte, a doutrina monarquista do corpo místico do Estado. Tudo isso é mapeado por Paz na primeira parte, que trata do Reino da Nova Espanha. 

Nas três partes subsequentes e centrais, Paz analisa como Juana se insere nessa trama e como sua obra excede em alguns pontos, tais como o sincretismo, o apreço pelo criollo (idioletos locais) e a tentativa de fundar uma literatura americana, distinta do cânone da Espanha e avessa a uma mera literatura transplantada de ultramar. As duas partes conclusivas, “A Décima Musa” e “As Armadilhas da Fé”, abordam, respectivamente, o longo poema intitulado Sonho e a Carta Atenagórica, digna da sabedoria de Atenas. 

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O primeiro é um dos ápices de poesia metafísica em língua espanhola. Descreve a alma que, distanciando-se aos poucos do corpo e da Terra, atravessa os planetas e consegue observar o Universo e as engrenagens da máquina do mundo. Quanto à carta, é um dos maiores enigma da vida de Juana. Resume-se a uma crítica incisiva ao Sermão do Mandato do Padre Antonio Vieira. O problema é que Vieira começara a proferir esse sermão em 1642. A carta de Juana é de 1690. Ou seja: há um lapso de 48 anos entre o sermão e a escrita da carta. O que teria motivado Juana a essa crítica depois de tanto tempo? O resultado foi fulminante por parte da Inquisição: abjuração. Completamente silenciada e proibida de escrever, Juana morreria cinco anos depois.

Uma das maiores virtudes do ensaio de Paz é etnografar a obra: descrevê-la a partir das categorias que lhe eram próprias à época. Sendo assim, não é ressaltada só a imanência da forma. Todas as engrenagens de uma metafísica da literatura assumem a cena. No caso de Juana, essa metafísica atualiza não apenas substratos indígenas, não-europeus e autóctones. Produz também a palingênese (renascimento) de signos arcaicos da alquimia, hermetismo, cabala e gnose, ou seja, vestígios pré e protocristãos. Talvez essa liberdade diante da literatura e da tradição só pudesse ser conquistada por uma mulher. Por isso é importante ler Juana, no passado e no futuro, fundadora e promessa de liberdade para a literatura da América.  *Rodrigo Petronio é escritor e filósofo, doutor em literatura comparada (Uerj) e professor titular da Faap 

Capa do livro 'Sor Juana Inés de la Cruz ou As Armadilhas da Fé', de Octavio Paz 

SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ OU AS ARMADILHAS DA FÉ Autor: Octavio PazTradução: Wladir DupontEditora: Ubu 608 págs., R$ 109

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