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'Sou paradóxico'

Pai do músico Manu Chao, Ramón conheceu Gabo, Cortázar e não teme os mortos: ‘gente pacífica’

Por Juliana Sayuri e PARIS
Atualização:
Atração do labirinto. Ramón Chao entrevista Borges para a Radio France Foto: ARQUIVO PESSOAL

Toca a campainha. Entra um senhorzinho a passos pequenos, chaves penduradas no pescoço, livros a tiracolo, barba feita, fios brancos, óculos quadrados, quepe preto e pulôver azul-marinho por cima da camisa e da camiseta. Tossia, talvez pelas lufadas deste outono parisiense. À primeira vista, difícil imaginá-lo um insurgente, rebelde, subversivo – fora pelas sobrancelhas grossas e grisalhas, com ares “indomáveis”.

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Hoje, Ramón Chao conta 79 anos, 22 livros e 22 tatuagens inspiradas nos próprios livros. Nascido na cidadezinha galega de Vilalba, o escritor vive em Paris desde 1949. Repórter por mais de 40 anos na seção cultural hispânica da Radio France Internationale, foi testemunha privilegiada do boom da literatura latino-americana nas décadas de 1960 e 70, caçando palavras com seu gravador das antigas – uma saudosa parafernália. Não frequentou as pomposas rodas intelectuais francesas da época, de Sartre e Merleau-Ponty, pois o que realmente lhe fisgava as atenções eram os escritores latino-americanos. Tornou-se assim muito amigo de Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Juan Carlos Onetti. “Mas mira, nem todo mundo gostava da ideia do boom, muita gente via como invencionice publicitária da agente literária espanhola Carmen Balcells – que lançou García Márquez e Vargas Llosa, entre outros. Alejo, por exemplo, não queria ser mais um autor dessa corrente. Só queria ser Alejo”, lembra Chao.

De Carpentier, Chao se lembra especialmente da saga para entrevistá-lo para a revista espanhola Triunfo, por volta de 1970. O cubano não tinha tempo, não tinha timing. Até que se encontraram num jantar de um amigo comum – e o escritor, enfim, aceitou seu pedido de entrevista. Chao o visitou dias depois na embaixada cubana. Conversaram por horas e, ao fim, disse: “Bueno, Alejo, te encaminho o texto antes de publicá-lo”. O escritor retrucou num espanhol um tanto afrancesado: “Não, eu te encaminho”, tirando o gravador das mãos do repórter. Dias depois, Chao recebeu uma carta com a entrevista, editada, digamos, com muita liberdade poética de Carpentier. Quase uma década depois, foi a vez de Chao “inventar” uma entrevista: a partir das lembranças de viagens, encontros e cafés ao longo dos anos de amizade, datilografou Conversaciones con Alejo Carpentier e mandou o manuscrito ao escritor, pedindo seu aval para publicá-lo. Não teve resposta. Tempos após a morte de Carpentier, em abril de 1980, Chao recebeu uma carta, com o manuscrito rabiscado por pequenas anotações do amigo. Publicou o livro em 1984. 

Chao caiu nas letras por acaso. Diz que fez duas “universidades” na vida: um hotel e uma rádio. A primeira, graças ao pai, um galego que quis se aventurar na Cuba pré-Fidel. Dinheiro ganhou, mas gastou tudo em óperas e recitais. Era aficionado por música. De volta à Galícia, juntou os poucos tostões que lhe restaram para abrir um pequeno albergue, que se transformou num hotel frequentado por literatos e músicos. Ali nasceram e cresceram os seis filhos. “Foi minha universidade popular. Foi maravilhoso crescer entre tantas ideias e culturas.” Caçula, Chao foi o único a se arriscar na música. E tinha jeito: pianista apaixonado por Bach, aos 11 anos ganhou uma bolsa de Manuel Fraga (“um ministro franquista, que morava perto de casa e ia assistir a meus recitais; franquista, imagine!, mas sabia perfeitamente como eu pensava: totalmente oposto ao franquismo”) para estudar em Madri. Aos 20, recebeu outra bolsa, dessa vez para estudar em Paris. Passou a ter fortes dores nos pulsos e precisou parar de tocar pouco tempo depois. Perdido na Cidade-Luz, por acaso, viu no jornal: “Radio France Internationale busca colaborador que domine espanhol e português, literatura e música”. 

Nessa época, conheceu Felisa Ortega, de Bilbao, desconfiadíssima do vizinho de maison na cidade universitária. Filha de republicanos espanhóis exilados, pensava que Chao e seus amigos eram franquistas – “mas quando me conheceu, viu que mais vermelho era impossível”, lembra. Juntos desde 1954, Chao e Felisa se casaram e tiveram dois filhos: Antoine e Manu.

Roland Barthes publicou Sade, Fourier et Loyola em 1979. A pedido da revista Triunfo, Chao foi entrevistar o teórico, a quem conhecera por um amigo, o crítico literário cubano Severo Sarduy. Levou mais uma vez seu gravador, fez diversas perguntas e, ao fim da entrevista, notou um belo piano na casa de Barthes. Tocaram uma sonata de Schubert a quatro mãos. Chao comentou que por 16 anos não encostara num piano. Barthes respondeu: “Não é possível. É preciso tocar. Faz bem para a mente, para os reflexos, para o corpo todo. Em vez de correr como esses tontos no Jardim (de Luxemburgo, ao lado da casa), toco todos os dias um pouquinho. É um excelente exercício”.

Chao saiu encucado da casa de Barthes. “O cara tinha razão.” Foi direto para uma loja de instrumentos musicais e encomendou um piano. Ao estreá-lo, os pequenos Manu e Antoine ficaram boquiabertos – e quiseram logo aprender. Sete meses depois, descobriu que os meninos estavam tristes, fartos das aulas rígidas de piano. Chao sentiu que estava se tornando um tirano, como fora seu pai, e alforriou os filhos: “Se não gostam mais de piano, tudo bem, deixem-no de lado. Mas a música, não. Escolham um instrumento e vão estudar!” Manu quis guitarra, Antoine, bateria. Foram estudar no conservatório, mas meses depois voltaram com a “descoberta”: “Papá, para o que queremos, não precisamos de conservatório.” Vieram assim Los Carayos, Hot Pants e, finalmente, Mano Negra. 

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“Um dia, Manu ligou. Devia ter 12 anos, 13: ‘Papá, que te lembra o nome Mano Negra?’. Mira, sei que tinha um movimento nacionalista iugoslavo Mano Negra. Também se refere a uns anarquistas da Andaluzia. ‘Então, é um bom nome?’ Sim, muito digno.”

Assim, quando Mano Negra e Manu Chao explodiram na década de 1990, Ramón Chao pensava, brincando: “Isso é culpa do Barthes”. 

Na casa dos Chaos, a discussão política sempre foi muito presente. “Na política, os meninos mamaran desde la cuna as ideias de esquerda. Discutíamos as consequências do capital neoliberal, a globalização, as injustiças, o poder das multinacionais. O que acontece é criminal. O modelo deveria ser outro. Tínhamos um retrato lindo do Che, mas Manu levou para Barcelona”, conta. 

Em 1992, Manu e Antoine embarcaram numa turnê do Mano Negra na América Latina. Literalmente, embarcaram no barco El Melquíades, ancorando em cidades portuárias ao longo da costa latino-americana para fazer shows. Pararam num porto colombiano – e Chao ligou para Gabo (García Márquez), que foi ver os meninos. 

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Os meninos, por sua vez, viram que não havia trens na Colômbia. Os trilhos existentes estavam cobertos de grama e musgo, as estações, desertas. Manu, “teimoso e imprevisível”, nas palavras do pai, quis reabilitar um trecho da ferrovia, de Bogotá a Santa Marta, parando em dez estações para abri-las para shows de rock, teatro e circo – além de Mano Negra, estavam French Lover’s, os músicos Garrucha e Soviso e os trapezistas Fabrice e Germain, da companhia Royal de Luxe, entre outros. Iam cruzar trilhos enferrujados e guerrilhas numa área disputada por paramilitares e narcotraficantes. Antoine precisou voltar à Europa para resolver pendências mais imediatas. Chao, na casa dos 60, decidiu acompanhar Manu na Colômbia, temeroso do que ouvia de sequestros e mortes. “Manu ali dando a cara a tapa e eu, tão tranquilo, por assim dizer, indo e vindo de exposições, teatros e bibliotecas em Paris. Subi num trem colombiano quase em marcha, com a ilusória sensação de que, comigo ao lado, nada aconteceria com Manu. Mas aconteceu muito. Primeiro, o ressurgir de nosso passado hispano-americano”, escreveu Chao pai no diário-livro Mano Negra en Colombia: Un Tren de Hielo y Fuego, publicado em 1994. 

Na época, Chao tatuou uma mão negra no braço esquerdo – entre tantas tatuagens. A primeira, inspirada na capa de seu segundo livro, Después de Franco, España, de 1975, ilustrada pelo artista espanhol Antonio Saura. Uma das últimas, traçada pelo polonês Jacek Wozniak, com conquistadores chegando à América Latina com um balãozinho de diálogo: “Do you speak english?”

Há 15 anos, Ramón Chao teve um AVC. Passou quase oito meses no hospital e, ao “despertar”, só se inquietava com uma coisa: o destino dos 3 mil livros de sua biblioteca. Por fim, decidiu doá-los à Biblioteca Octavio Paz, do Instituto Cervantes, em Paris. 

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Entre cartões-postais parisienses como a Champs-Elysées e a Torre Eiffel, o predinho discreto do Instituto Cervantes abriga um acervo de 66 mil documentos dedicados especialmente à cultura espanhola e hispano-americana. Chao visita a biblioteca desde que se mudou para a cidade. “É como minha casa”, disse, também justificando porque quis marcar a entrevista ali. “É bom ver livros antes meus agora lidos por outras pessoas. Muitos estão autografados, com dedicatórias carinhosas de grandes escritores, grandes amigos”, diz, mirando títulos aleatórios nas diversas estantes.

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No ano passado, o escritor teve outro AVC. Agora está se recuperando, mais uma vez. Pergunto se é feliz. “Feliz? Para mim, isso é um palavrão. Feliz?! Não, não estamos neste mundo para isso. Ainda estamos para outras experiências. Pesa-me a consciência quando me sinto, digamos, bem, pois eu não sou ninguém. Há metade da humanidade morrendo, vítima de injustiças terríveis. Tive uma vida privilegiada, em todos os sentidos. Mas penso que não posso me sentir feliz se há tanta coisa errada neste mundo. Sim, sou um pessimista. Na literatura também, nos últimos tempos nos despedimos dos gigantes – e não há escritores novos à altura deles. Eu? Eu não sou ninguém.” Por que escrever, então? “Meu pai queria que eu fosse um Beethoven, um Chopin. Não fui. Mas me incutiu esse desejo de ser alguém. Por isso, escrevo. Sim, entre ‘ninguém’ e ‘alguém’ há um paradoxo, mas mira, sou muito paradóxico. Afinal, sou galego.”

Enquanto o escritor voltava a caminhar, lentamente descendo as escadas da biblioteca, falou do livro que agora pretende escrever, sobre a mãe e a morte. “Não, não tenho medo da morte. Os mortos são gente muito pacífica.” 

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