Stanislaw Ponte Preta teria muito trabalho com o Febeapá atual

Jornalista, humorista e heterônimo de Sérgio Porto recebeu homenagem 50 anos após sua morte

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

É um lamento cada dia mais frequente: “Ah, se o Lalau fosse vivo!” E que só perde ou empata com este: “Que falta o Sérgio Porto faz!” Não há vencedor nessa disputa, já que Lalau e Sérgio Porto eram uma só pessoa. 

O escritor Sérgio Porto, conhecido como Stanislaw Pontepreta Foto: Acervo Estadão

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Lalau, autoapelido de Stanislaw Ponte Preta, foi o heterônimo com que o jornalista, humorista, radialista, televisista e teatrólogo Sérgio Porto se consagrou como o maior e mais popular gozador do país em seus últimos quatro anos de vida, quando se concentrou na edição do Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País), resenha em forma de crônica sobre a imbecilização diária do Brasil instrumentalizada (ou estrumentalizada, diria ele) pela ditadura militar. 

Atualizada diariamente, nas páginas do diário Última Hora, com os préstimos da Pretapress, fictícia agência noticiosa que o abastecia de fait divers, anedotas e personagens reais recolhidos em jornais enviados pelos leitores, “seus olheiros especializados”, a quem regalava com uma carteirinha de colaborador, o Febeapá revelou-se o mais variado e divertido painel do autoritarismo e do moralismo doentio que tomou conta do País depois da “redentora”, que era como sempre se referia ao que Dias Toffoli, atual presidente do STF, prefere chamar de “movimento de 64”. 

Porque ele gozava como ninguém e de forma implacável os poderosos do dia e nossos mais ridículos costumes, os recorrentes lamentos por sua ausência dispensam maiores explicações nesta primavera flagelada por uma sequência de gestos e falas cujo teor de absurdo e cretinice não têm rival na história da República. Seu único parâmetro seria o Brasil de 1964 a 1985, que testemunhei de fio a pavio, digo-o sem qualquer alusão voluntária a choque elétrico e bomba. 

Na semana passada, a Fundação Casa de Ruy Barbosa, no Rio, prestou uma homenagem a Sérgio Porto pelos 50 anos de sua morte, em 30 de setembro de 1968. De maneira indireta, ele é sempre lembrado cada vez que um político de pouco ou nenhum escrúpulo e muita cara de pau diz alguma besteira ou propõe, por exemplo, reajuste no próprio salário, como na última quarta-feira fez o deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), candidatando-se sem escalas à categoria de “depufede”, contração melévola de depu(tado) com fede(ral) inventada pelo imortal Molière dos Ponte Preta. 

Sérgio (Marcus Rangel) Porto morreu cedo. Tinha 45 anos quando seu coração de boêmio e workaholic cansou de dar hora extra e ele apagou. Por 74 dias não pegou o AI-5. Por seis meses não pegou O Pasquim, de que foi padrinho espiritual. Por um ano não pegou Paulo Maluf na prefeitura de São Paulo. 

Perdeu ainda os três últimos ditadores fardados, perdeu Sarney, Collor, a broa de milho do bonachão Itamar, Cunha, Aécio, Cabral (dois! Bernardo “Besame Mucho” Cabral e o filho de seu grande amigo e xará, que rapinou o Estado do Rio), e o vastíssimo besteirol que precedeu e sucedeu aquela bacanal de tartufice na Câmara dos Deputados, na tarde de 17 de abril de 2016. 

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Hoje, beirando os 100 anos de idade, não teria mais condições de vigiar as novas atrações do festival que criou. Mas seus avatares nas redes sociais têm se incumbido de alimentar o Febeapá em curso, sobretudo com o que têm dito, prometido e cometido o presidente eleito e seus anunciados ministros.

Se Lalau ouvisse o próximo ministro do Meio Ambiente afirmar que “a discussão sobre aquecimento global é secundária” e acenar com a retirada do Brasil do Acordo de Paris sobre o clima, debocharia mais ou menos assim: “Já imaginou o tamanho do estrago se ao cocoroca Ricardo Salles tivessem delegado não o meio ambiente, mas o ambiente inteiro?” 

Cocoroca era uma das gírias mais usadas pelo Lalau. Também inventou as expressões bossa nova, teatro rebolado, picadinho relations, e um punhado de bordões com a mesma estrutura comparativa, que logo entraram para o linguajar das ruas: “mais por fora que umbigo de vedete”, “mais por baixo que calcinha de náilon”, “mais branco que bunda de escandinavo”, “mais feio que mudança de pobre”. 

Escrevia como um malandro mais íntimo do vernáculo que de uma navalha. Mas suas irreverências lanhavam com classe e desconcertante bom humor. Estaríamos até agora rolando de rir se ele pudesse ter lido ou ouvido que “as provas do Enem funcionaram como doutrinação de esquerda” (apud Ricardo Vélez Rodrigues, futuro ministro da Educação), que o próximo chefe da Casa Civil, Onyx Laranzoni, corrupto confesso, já “se entendeu com Deus”—e talvez por isso tenha sido perdoado pelo juiz (e vindouro ministro da Justiça) Sérgio Moro.

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Há dias, ao tomar conhecimento das últimas sandices da pastora Damares Alves, alçada ao recém-criado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que depois de ameaçar o Brasil com uma ditadura evangélica, denunciar o ponto G como “invenção dos petistas”, fazer do aborto crime hediondo e criar a “bolsa estupro”, confessou ter visto Jesus trepado numa goiabeira, lembrei-me—e não fui o único—da mania que Lalau tinha de iniciar seus coloquiais comentários com a frase “estava eu comendo as minhas goiabinhas quando...”. 

Quando soube, por exemplo, que “otoridades” ungidas pela ditadura haviam proibido biquinis nas praias, namoro em praça pública, pernas de fora e máscaras no carnaval, venda de vodca (bebida “comunista”), espetáculos censurados e seus defuntíssimos autores, como Sófocles e Feydeau, intimados a depor na delegacia mais próxima. 

Lalau deitava e rolava. Antes do AI-5, isso ainda era possível.

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Reli esta semana os três volumes do Febeapá (é da Cia das Letras a reedição mais recente). Viajei de volta aos primeiros anos da “redentora” e sua paranoica obsessão por ver em tudo o dedo do comunismo. Mas a desoladora verdade é nem naquela época um candidato a chanceler ousaria reduzir a questão climática a um “dogma marxista”, como recententemente fez o diplomata guerreiro frio Ernesto Araújo. 

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