Steve Toltz escreve um romance hilário sobre a morte

Finalista do Booker Prize de 2008 traça os caminhos da alma humana em ‘Here Goes Nothing’

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Por Ron Charles
Atualização:

Diante de uma pandemia mundial repleta de novas ameaças de guerra nuclear, você talvez esteja procurando um livro animado, eis que sai um sombrio romance cômico, escrito por Steve ToltzHere Goes Nothing, que explora o humor mórbido para falar de toda uma raça condenada. Cada cópia deste livro deveria vir com uma dose de Prozac.

Autor australiano que vive em Los Angeles, Toltz atraiu um público internacional com sua caótica estreia, A Fraction of the Whole, que foi finalista do Booker Prize em 2008. Seu segundo romance, Quicksand, também vinha com um absurdo catálogo de infortúnios. E agora, com Here Goes Nothing, ele leva sua graça misantrópica para o Grande Além.

Toltz descreve as alucinações de um homem que entra no plano espiritual Foto: Flickr

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Conhecemos o narrador, Angus, quando ele já está morto. A sepultura esclareceu um importante ponto teológico: as coisas não acabam como a gente pensa. Em vida, admite Angus, ele tinha certeza de que “a própria noção de alma imortal era apenas uma maneira de evitar o confronto com nossa iminente viagem a Lugar Nenhum. É humilhante errar deste jeito”.

Trata-se de uma comédia que leva a sério a tragédia da imortalidade. Ela vira o medo do vazio de cabeça para baixo para meditar sobre a terrível suspeita de que “o abismo do nada eterno era apenas um sonho”. Angus é – era? – um ladrão que acabou sossegando, mais ou menos, com Gracie, uma mulher bastante peculiar. Era um casamento de opostos. Angus nutria um ceticismo amargo. “As pessoas estão sempre tentando contar suas bênçãos para você”, diz ele, “mas sua aritmética nunca está certa”. Gracie, enquanto isso, cultiva uma profunda fé em todo o panteão da espiritualidade – de Ganesh e Virgem Maria a fantasmas e anjos. Para ganhar a vida, ela realiza cerimônias de casamento irônicas: metade assado de carne, metade benção espiritual.

Nas páginas iniciais do romance, um novo vírus salta de cães para seres humanos e começa a arrastar sua foice por todo o globo. Um velho bate à porta e convence Gracie de que ele morava naquela casa. Seu último desejo é morrer naqueles aposentos familiares. Como é um velhinho gentil, Gracie concorda, mas Angus consegue ver que tem alguma coisa errada. Aí o velhinho o mata.

Restauradora trabalha em afresco de Giotto na capela inferior da basílica de São Francisco de Assis Foto: Matteo Berlenga/REUTERS TV

O problema é que este não é o fim do romance – nem de Angus. Enquanto sua viúva enfrenta o luto com bravura, se perguntando como o marido morreu, Angus se encontra numa vida após a morte que parece uma cidade deprimente na década de 1970. “Quem conceberia um lugar tão enfadonho assim?”, Angus se pergunta. “Linhas de alta tensão, bueiros, sinais de pare, caminhões de lixo, buracos, homens cantando mulheres”. Nenhum filósofo, nenhuma religião, nenhum pintor renascentista chegara perto de prever esse mundo insípido. Confrontadas por uma sequência ininterrupta do mesmo absurdo político, social e pessoal que sofreram na vida, essas almas ficam com ciúmes dos “zumbis, que podem viver ao ar livre e fazem dietas simples”.

Aqui não tem ambrosia, só café ruim. Em vez de ganhar asas e uma harpa, Angus é designado para trabalhar numa fábrica de guarda-chuvas. “Já tínhamos desperdiçado nossas vidas”, pensa ele. “Agora tínhamos que desperdiçar nossas mortes também?”. E, o pior de tudo, ele ainda está deprimido e constipado. “A banalidade dessa situação era levemente angustiante”, diz Angus. “Eu ficava lá, sofrendo, pensando: Sério? De novo isso?”.

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A pandemia mundial e nossos desajeitados esforços para controlá-la não são as únicas alusões contemporâneas da história. Tem também um golpe da multidão MAGA quando os mortos se opõem violentamente à chegada de mais e mais “imigrantes” do outro lado. E aqui as pessoas até ficam doentes – mas pelo menos têm assistência médica gratuita na vida após a morte, então, nesse sentido, morrer é melhor do que viver nos Estados Unidos.

Embora não haja chamas eternas neste romance, Toltz, assim como Mark Twain perto do fim da vida, escreve com uma pena aquecida no fogo do inferno. Sob a superfície irônica, Here Goes Nothing é uma desconstrução implacável da certeza religiosa e da afirmação espiritual. “Se Deus existisse”, diz Angus, “ficaria claro que ele tinha uma personalidade meio esquiva”. A clareza que tantas tradições de fé prometem do outro lado se queima nos intermináveis ciclos da trama de Toltz. “Ninguém tinha respostas”, lamenta Angus. “A esta altura, tem coisa mais perversa do que fingir saber o significado da eternidade? Será que vamos conseguir acreditar de novo em alguém numa posição de autoridade religiosa?”.

Falas brilhantes caem nessas páginas feito flores jogadas sobre o caixão. Mas um enredo sobre a natureza eternamente estática da realidade corre o risco de ser infectado por sua própria falta de progressão. Depois de sublinhar tantos dos gracejos inteligentes de Toltz, continuei me deparando com a pergunta: o que significa esse monte de pessimismo filosófico? É difícil afastar a impressão de que Toltz e Angus estão girando sem sair do lugar.

Mas, por trás dessa comédia peculiar e cada vez mais sombria, está uma rejeição irônica daquela esperança persistente de que a morte nos extinguirá ou despertará nosso melhor, oferecendo justiça, consolo, salvação, revelação ou alguma coisa desse tipo. Nas páginas de Toltz, a imperecibilidade não traz nenhuma transformação. A má notícia é que melhorar a nós mesmos ainda e sempre depende só de nós. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Here Goes Nothing

Steve Toltz

Melville House - 375 páginas - US$ 27,99

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