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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Surreality shows

O comprismo desvairado encontrou seu programa-exaltação em ‘Além da Conta’, reality especializado em encher as burras do comércio de Miami e NY

Atualização:
Conta alta. Promoção de uma filosofia de vida orientada pela frivolidade Foto: DUARTE RORIZ/GNT

Já ouvira falar no programa e sempre me recusara a vê-lo. No último fim de semana, desencaminhado por um daqueles zappings negligentes a que vez por outra nos entregamos, deparei-me com Além da Conta. Era a reprise do que fora ao ar três noites antes. Não haviam exagerado: o programa é mesmo um espanto, talvez o mais espantoso depois de Mulheres Ricas, seu mais próximo similar. 

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Produção independente, hospedou-se no GNT (o canal mulherzinha, que já foi fissurado em cama, daí o apelido GNTália, e agora não sai da cozinha) e tem como âncora ou hostess ou guia a comediante global Ingrid Guimarães, exímia na arte de encher a burra dos comerciantes de Nova York e Miami com um sorriso nos lábios. O comprismo desvairado encontrou seu mais novo programa-exaltação. 

Guiadas (e sobremodo animadas) pela atriz, celebridades de variados calibres, preferencialmente ligadas à Rede Globo, compram o que podem e não precisam nas mais badaladas lojas das duas cidades. Gastam a rodo, divertem-se com sua prodigalidade (ok, ninguém tem nada com isso, a grana é delas ou da produção do programa ou permuta com os lojistas), mas, sob o disfarce de uma brincadeira inconsequente, promove-se uma filosofia de vida orientada pela frivolidade, a busca de status, o esbanjamento, que já seria nefasta se a gastança apenas beneficiasse o comércio daqui, sem contribuir para aumentar o déficit de nossa balança comercial, que só na primeira semana de janeiro chegou a US$ 868 milhões. 

Seu público-alvo é a mulher que “abusa das compras” ou “sonha em abarrotar as malas durante uma viagem internacional”. As que têm dinheiro se identificam; as tesas sublimam e chupam o dedo, quem sabe um dia poderão encher suas malas de etiquetas grifadas em Miami. Mais do que um sonho, Além da Conta promove uma hemodiálise emocional nos consumistas vicários. 

Vi outras edições do programa na internet. O dedicado ao consumo infantil, com Ingrid arrastando Giovanna Antonelli pela FAO Schwarz, a mais famosa loja de brinquedos do mundo, e por outras mecas de supérfluos para crianças em Manhattan, me deixou estupefato. Pelo exibido (numa espécie de Bergdorf Goodman de bonecas, um personal stylist ensina o que cada boneca deve vestir para melhor revelar sua personalidade) e pelas observações de Ingrid, atenta para que nenhuma observação crítica comprometesse o clima euforizante e dissipador do programa. 

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Ao ouvir Antonelli confessar sua permanente preocupação em compensar brinquedos de desejo com brinquedos lúdicos, que estimulem a imaginação da criança, Ingrid interveio rápido: “Mas as crianças não se interessam muito por esse tipo de brinquedo”. O que é (ou pode ser) verdade, e por isso mesmo merecia um parêntese na conversa, não um corte seco como lhe deu Ingrid, possivelmente para evitar que o estímulo ao consumismo precoce (é de pequenino que se deforma o pepino) acabasse questionado e, eventualmente, condenado, prejudicando o programa.

Além da Conta é um reality show com sensação térmica de surreality show. O real caiu, a inflação subiu, os gastos dos brasileiros lá fora bateram recorde em 2014, nada mais inoportuno na crise econômica que incentivar gastos além da conta em dólares ou euros. Provavelmente por isso programas como Mulheres Ricas sumiram da TV. 

Esse era imbatível, uma pornográfica orgia comprista protagonizada por uma grupelho de grã-finas acintosamente endinheiradas e eternamente no cio consumista, soltas e soltando besteira em butiques e malls de (onde mais?) Miami, of course. 

Transmitido pela Bandeirantes, era uma cópia da franquia The Real Housewives, reality do canal a cabo americano Bravo impulsionado pela exortação bushista ao consumo após os atentados do 11/9, protagonizado por donas de casa desesperadas para torrar a fortuna dos maridos em supérfluos absurdamente caros, ora em Atlanta, ora em Miami, Beverly Hills e Nova York. A série chegou até nós pelo canal Sony, não emplacou, mas nos legou uma filha bastarda. 

De uma vulgaridade terminal, Mulheres Ricas tinha em seu elenco de socialites uma colecionadora de bonecas Barbie, uma sem-terra que despontara para o mundo de Caras posando para a Playboy e até uma empresária nova-rica que se vangloriava de combinar a cor do batom com a dos sapatos e foi acusada publicamente de “prostituta de luxo” pelo marido, um megavendedor de frangos com quem já fez as pazes. Deslumbradérrimas com sua propensão ao consumo conspícuo, ofereciam um espetáculo patético, “mais focado em grana e ostentação” do que seu modelo americano, na avaliação de Adriana de Moura, a brasileira estabelecida na Flórida que se encaixou no mulherio de The Real Housewives Miami.

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Reality shows como os citados, em total descompasso com a era de austeridade pós-2008, têm o condão de manter sempre viva a figura de Thorstein Veblen (1857-1929), economista e sociólogo, criador do conceito de “consumo conspícuo” num clássico da crítica social publicado em 1899, que tantos estudiosos influenciou, com destaque para o John Kenneth Galbraith de A Sociedade Afluente. Veblen foi um crítico implacável (não marxista) do capitalismo e do ritualístico desperdício de dinheiro em busca de status dos ricaços do final do século 19. “Para se fazer admirar é preciso desperdiçar”, era o mote dos novos-ricos da época. Ainda é, e não apenas dos argentários americanos.

Opinião por Sérgio Augusto
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