'Takarakataka no!'

Yoko Ono convidou Osvaldinho da Cuíca para seu show. Não queria saber de ziriguidum, até que...

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Por Flavia Tavares
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Uma cuíca, um pandeiro, um berimbau, uma frigideira transformada em instrumento, baquetas, chapéu, calça prateada, sapato cinza. Está tudo em cima do sofá, numa bagunça organizada, à espera da van que virá buscar Osvaldinho. Ele está agitado. Senta, levanta, atende ao telefone, faz um café e tenta se concentrar. Com fones de ouvido e um discman, empenha-se em decifrar aquela música experimental, em inglês, língua que não domina, para o show daquela noite de quinta-feira. Osvaldinho da Cuíca é o convidado especial da performance que a artista-e-viúva-de-John-Lennon, Yoko Ono, realizará no Theatro Municipal de São Paulo. Recebeu instruções que não compreendeu muito bem: ela não quer saber de ritmo, de música, de samba. Quer "sons". Bom, ele faz samba há mais de 50 anos. "Sons" ele não está muito acostumado a fazer... Enquanto tenta se acalmar, Osvaldinho conta para seu empresário, Paulinho, o que aconteceu até ali. Uma semana antes, o empresário responsável pelo show de Yoko no Brasil, Emílio Kalil, entrou em contato para convidar o sambista. Ela havia solicitado um músico bem brasileiro para acompanhá-la. Osvaldinho, primeiro cidadão-samba de São Paulo, topou, apesar de não conhecer muito o trabalho dela. Mas, depois de tocar sua cuíca na Rússia, no Japão e na Holanda, de acompanhar Clementina de Jesus, Cartola, Adoniran Barbosa, Vinicius de Moraes, Dionne Warwick e Bill Haley, e de compor sambas-enredo e puxar escolas de samba na avenida (especialmente para a paulistana Vai-Vai, sua escola de coração), depois de vencer um câncer de palato, poucas coisas o intimidam. No sábado, ele esteve no Hotel Fasano, onde Yoko está hospedada, para se apresentar, apresentar seus parceiros e seus instrumentos à artista. Ela ficou particularmente entusiasmada com o cavaquinho de Odair Meneses e com o berimbau. Quando Marcelo e Júlio César, filhos de Osvaldinho e percussionistas, emendaram um ziriguidum, Yoko foi direta: "Takarakata no!". Eles nem precisavam falar inglês para entender. Na tradução, o esquindô esquindô estava vetado. Os quatro sambistas foram para casa encafifados. No ensaio que teriam na terça-feira, já no Theatro Municipal, não sabiam o que exibir para a gringa. Combinaram de seguir sua intuição e as instruções que ela e o pianista Keco Brandão passassem. A orientação dela chegava por meio de uma intérprete. Só que a tradutora estava lá no fundo da platéia, enquanto os artistas ocupavam no palco. A comunicação seguia truncada. Em um determinado momento, Yoko se cansou de gritar para a tradutora, que gritava de volta para os músicos. Ela se virou para eles e começou a falar, em inglês mesmo, o que queria. Por incrível que possa parecer, tudo ficou mais claro. Osvaldinho confessa que, inicialmente, achou a música dela meio esquisita, até feia. Aquela gritaria toda que ela apronta não faz muito o gênero do sambista, acostumado com o samba rural paulista mais tradicional. Por outro lado, ele gosta da idéia de ser posto à prova. Antes de Yoko, seus maiores desafios foram os trabalhos com Gerald Thomas e Philip Glass, na ópera Mattogrosso, em 1989, e com Arthur Moreira Lima, num concerto também no Municipal. Depois de algumas poucas horas de ensaio, chegou a hora do lanche. Osvaldinho não tem muito a ver com Yoko, além da baixa estatura. E o fato de ambos serem vegetarianos. Por isso, quando seis coxinhas e seis Coca-Colas foram entregues pela produção no camarim, ele ficou fulo. "Não comam essa porcaria", disse para os companheiros. Eles, naturalmente, desobedeceram. E Osvaldinho acabou cedendo também. De terça a quinta-feira, o sambista não desgrudou do discman com os CDs de Yoko. Como não lhe passaram a versão em português das músicas que acompanharia com a cuíca, ele tentou traduzir com seu "inglês de colegial". Conseguiu captar alguma coisa sobre coração, sentimento, tempo, amor e ódio. "Hate é ódio, né, Paulinho?" É. A van está atrasada. Osvaldinho aproveita para mostrar, todo orgulhoso, sua versão solo, na cuíca, de Obladi Oblada, dos Beatles. "Achei que ela ia ouvir isso e me achar o máximo. Só eu sei fazer. Mas nem tive chance de mostrar pra ela. Me proibiram de falar de Beatles ", conta, decepcionado. Ainda há tempo para o Hino do Corinthians chorado na cuíca antes de o motorista da van tocar a campainha. É hora de ir para o Municipal. No caminho, Odair, um negão que é todo sorriso, diz que Yoko foi muito simpática com eles, "uma dama". Os dois vão afinando os instrumentos e acertando os momentos de intervenção na obra da artista. Combinam que, se o pianista se metesse a besta, querendo bancar o arranjador, mandariam tudo para aquele lugar. Já no teatro Osvaldinho e Odair são encaminhados para o pequenino camarim 6. Os cinco músicos não caberiam ali, então, eles são transferidos para o camarim 19 - bem longe do de número 8, da estrela da noite. Marcelo e Júlio César chegam com as congas, a caixa, o surdo, os triângulos. Tudo que é instrumento de percussão está a postos. Os contra-regras arrumam os cabos dos amplificadores. Um deles coloca uns óculos redondinhos e arrisca: "Hi, Yoko, I?m John Lennon. Quer me adotar?" Todos caem na risada, olhando de soslaio para garantir que a senhora Lennon não está por perto. Dá 18h, dá 19h e nada da passagem de som para o show das 21h. O veterano chama os companheiros para uma reunião de emergência no camarim 19. "Vamos acertar os últimos detalhes por nossa conta." Como Osvaldinho não lê partitura, ele faz um esquema das oito "músicas" da performance, com desenhos e palavras-chave. Todos compreendem as lições do mestre, enquanto mastigam mirrados sanduíches comprados pela produção da Yoko no supermercado, a R$ 2,40 cada, empurrados pra dentro com a santa ajuda da Coca-Cola. Odair, mais esperto, foi à pizzaria da esquina. "Eu nasci e me criei no Centro da cidade. Não vou saber me virar?" Às 19h45, uma das assistentes de Yoko, Anne, convoca todos os músicos para o palco. Yoko já estava no camarim 8, mas a passagem de som seria feita por ela, Anne, verbalmente, em inglês. "Nunca vi isso", resmunga Osvaldo. São 30 minutos de agonia. Anne fala, com seu sotaque algo germânico, algo escandinavo, Keco tenta traduzir, Osvaldo se perde, Osvaldo se acha, volta a assistente, mais uma confusão. Passagens de som e luz costumam ser chatas mesmo. Os pedidos finais de Yoko: 1. Nas duas músicas em que ela entraria no palco se arrastando dentro de um saco branco, os músicos não deveriam fazer nenhuma intervenção. Ela havia sugerido que eles imaginassem fantasmas e cemitérios para improvisar os sons, mas, agora, temia que o público interpretasse que ela era o fantasma. Isso não podia acontecer. (Osvaldinho comenta: "Para que dois sacos eu não entendo. Um já é demais pra mim"). 2. O final da performance ficaria a cargo dos músicos. Eles poderiam fazer o carnaval que queriam desde o princípio. A hora do show se aproxima e, no saguão do teatro, garotas de franja e óculos vermelhos e rapazes de calça xadrez estão ansiosos. Ah, o Supla também está lá. Três toques de campainha soam, a luz se apaga e Yoko entra no palco, com um terno e chapéu brancos. Ela começa a se despir ao som de "uhu!" da platéia, até ficar só com uma malha preta. Faz um pas de deux com uma cadeira, numa dança esquisita. É aplaudida. Deixa o palco para a apresentação de um vídeo curto, que mostra uma foto dela com John Lennon e o filho do casal, Sean. Mas ninguém pode falar de Beatles... No número seguinte, ela reaparece com uma camisa suja de sangue (cênico, espera-se) e começa sua tradicional cantoria/gritaria. Não mais como antigamente, quando o tom era agudo. Agora, a voz é mais gutural, mais madura, não menos estranha. Os meninos de Osvaldinho vão fazendo seus "sons" e, com muita seriedade, tentam fazer parte da performance. A certa altura, o encontro acontece. Osvaldinho chora a cuíca. Yoko responde. Mais um tom dele, mais um gemido dela. Impressionante é que é a cuíca que parece a voz humana. Lá vem a japonesa no saco. Os músicos ficam quietinhos, cenário que são. O show continua entre vídeos de John, imagens de túmulos, paisagens, gritos e grunhidos, percussões tímidas. Na hora do improviso final, Marcelo saca o pandeiro, Yoko arrisca um passinho de samba e o público se empolga. Todos em pé, batendo palma, Odair, Júlio César, Marcelo e Osvaldinho fazem seu esquindô. Até o pianista Keco cai no tecotelecoteco com um apito. Ela não devia supor que é de samba que o povo gosta, porque já tinha até deixado o palco quando o Municipal todo sambava. Yoko voltou à cena e dançou um arremedo de samba para delírio da galera. Era a apoteose. Nos agradecimentos, a artista lascou um "I love you, boys" para os rapazes que dividiram o palco com ela. Osvaldinho, malandro que é, declarou que compreendeu a obra de Yoko Ono. "É uma mensagem muito importante, sobre paz e guerra, sentimentos. Estou orgulhoso de ter feito parte." Se o público entendeu também, são outros quinhentos. Mas que todos se renderam ao som da cuíca, do pandeiro, do cavaquinho e da conga, isso you can imagine.   Quarta-feira, 7 de novembro Yoko Ono Multimídia Yoko Ono esteve pela primeira vez em São Paulo para a performance Uma Noite com Yoko, no Theatro Municipal, com Osvaldinho da Cuíca. Suas obras estão na exposição Yoko Ono - Uma Retrospectiva, no Centro Cultural Banco do Brasil, até dia 3 de fevereiro.

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