Teatro de marionetes tradicional no Mali é ameaçado pelo terrorismo

Ocupação de jihadistas, golpe de Estado e conflitos étnicos impedem única mulher marionetista do país de se apresentar

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Por Redação
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Todas as manhãs, Maoua Koné acorda e olha as máscaras e marionetes nas paredes do seu pequeno apartamento de um dormitório em Bamako. Quando Maoua, a única mulher marionetista de Mali, manipula as silhuetas reluzentes, seus colegas homens estremecem. “Os homens têm pavor de mim porque acham que tenho poderes mágicos”, diz ela. “Acham que não é possível uma mulher ser marionetista.” 

A artista do MaliMaoua Koné Foto: Clair MacDougail/The Economist

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Sua carreira venceu o chauvinismo, mas foi sufocada por outro obstáculo: o conflito violento.

O teatro de marionetes do Mali teve origem há séculos no vilarejo de pescadores de Bozó e em Bambara, reduto de caçadores, nas regiões sul e central do país. A tradição coexistiu com o islamismo, a principal religião do Mali, que historicamente proíbe a representação figurativa de seres humanos. As performances exploram histórias das comunidades, narram contos envolvendo moralidade e descrevem os papéis dos homens e das mulheres. Comemoram a chegada das chuvas e da colheita. Máscaras e bonecos assumem o papel de pessoas e animais, mas também representam traços de caráter, espíritos e ancestrais.

A rica vida cultural do país sempre foi separada por gênero. No renomado mundo musical, por exemplo, as mulheres raramente tocam o djembe, uma espécie de bateria, ou o kora, um instrumento semelhante ao alaúde. As mulheres tradicionalmente são proibidas de manipular marionetes ou mesmo fabricá-las, ofício que implica rituais complexos, realizados ao abrigo da noite e que envolvem nozes de cola e galos. Nestas cerimônias, diz Broulaye Camara, também marionetista, os homens iniciados determinam se o espírito de um boneco será benevolente. As mulheres são barradas, sustenta Camara, porque não são iniciadas e porque são fofoqueiras. “As mulheres falam demais. Não guardam segredos”, diz ele.

Maoua Koné, uma mulher alta, cabelos grisalhos e curtos, 60 anos, diz que eles não têm de se preocupar. Suas marionetes não têm espíritos pois são “modernas”, feitas de argila e papel machê e não de madeira. Ela repudia o tipo antigo. “Nunca os tocaria. Eles não fazem nada, mas os homens em torno podem fazer coisas ruins.”

Maoua cresceu em Koulikoro, a uma hora de Bamako, às margens do rio Niger, cidade conhecida por suas marionetes, máscaras e estatuetas sagradas excepcionais que representam os mortos. Ela nasceu em uma família nobre no complexo sistema de castas do Mali e seus pais não apoiavam suas aspirações. “Foi difícil para minha família aceitar meu trabalho”, diz ela. Entre 12 irmãos, é a única artista e a única que decidiu não ter filhos porque poderiam atrapalhar sua carreira.

Ela se beneficiou dos investimentos nas artes por parte do primeiro presidente do Mali, Modibo Keïta (1960 a 1968). Seu governo “compreendeu que as artes eram uma parte importante da criação de uma identidade nacional e de união das pessoas”, afirma Mary Jo Arnoldi, curadora do Museu Nacional de História Natural em Washington e especialista na cultura das marionetes. Koné estudou no National Institute of Arts (INA), um colégio de vanguarda que “derrubou as barreiras de casta e de gênero” e formou alguns dos mais brilhantes artistas do Mali, segundo Mary Jo Arnoldi.

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A própria Maoua quebrou muitos tabus. Ela criou esculturas de vaginas rompidas para ilustrar os danos da mutilação genital, estátuas retratando a violência doméstica e figurinos satíricos de mulheres portando véus cobrindo todo o rosto – prática no Mali que ela desaprova. Apesar de todo o seu ceticismo, Camara trabalhou com Maoua na trupe nacional de marionetes na década de 1990, quando companhias urbanas levavam conhecimento aos malineses sobre a Aids e o trabalho infantil.

Este progresso artístico foi violentamente interrompido. Depois de uma ocupação parcial pelos jihadistas em 2012, seguida por um golpe de Estado, os estrangeiros não mais participaram de performances e workshops de Maoua. Convites para festivais na Europa e escolas desapareceram. Os doadores desviaram os fundos para os serviços de segurança (14 mil soldados da força de manutenção da paz da ONU continuam no Mali; os conflitos étnicos ainda são intensos). “Os europeus temem nos convidar e como aqui há explosões e pessoas são assassinadas, eles não vêm aqui.”

Para Fodé Sibidé, diretor do festival anual de marionetes do Mali, o atual governo e os doadores deveriam patrocinar as artes para promover a paz no país dividido. “Os políticos não compreendem o valor da cultura. O problema da segurança não será resolvido com as armas, mas com as artes.”

Hoje a trupe de Maoua Koné, chamada Tocha da Liberdade, raramente tem oportunidade de se apresentar. Mas os integrantes do grupo ainda se reúnem todas as noites no salão da INA onde criam marionetes para um show que talvez nunca levem ao palco. / Tradução de Terezinha Martino 

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