Tempo de novas retóricas

Os candidatos americanos mudaram o tom ao falar de América Latina. Mas em que isso se traduzirá?

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Por Kenneth Serbin
Atualização:

Depois do fim da Guerra Fria, das ameaças esquerdistas na América Central e da queda das ditaduras, as discussões norte-americanas sobre América Latina diminuíram consideravelmente nos anos 1990 - embora as relações entre EUA e América Latina ainda parecessem presas aos vícios dos tempos da Guerra Fria. Os ataques do 11 de Setembro e os conflitos no Oriente Médio distraíram ainda mais as atenções dos EUA na primeira década deste século. A atual campanha presidencial parece seguir o mesmo modelo, com raras alusões à América Latina nos discursos, debates e sites dos candidatos. Mas essa eleição pode marcar o começo de relações mais intensas entre EUA e América Latina. O desejo do eleitorado por mudança e o perfil incomum dos candidatos - um republicano de comportamento independente (John McCain), uma mulher (Hillary Clinton), e especialmente um jovem negro (Barack Obama) cuja cadência remete a Martin Luther King - geraram um nível de excitação inédito desde as eleições de 1968, quando a Guerra do Vietnã eletrizava parte do eleitorado. Com a crescente vulnerabilidade da economia e um sentimento de insegurança acerca da imigração e da política externa, a América precisa de uma liderança forte. A imigração de latino-americanos, incluindo centenas de milhares de brasileiros, tornou-se um tema crucial na campanha de 2008 e dividiu os republicanos entre McCain e candidatos que buscam uma linha mais dura contra imigrantes ilegais. A ascensão de McCain tem ajudado a eliminar o discurso agressivo da campanha. Em 2005, McCain, senador pelo Estado fronteiriço do Arizona, mudou de lado no Senado para co-assinar uma reforma nas leis de imigração com ninguém menos do que o ultraliberal Edward Kennedy. Derrotado, apesar do apoio do presidente George W. Bush, essa atitude o afastou ainda mais da base conservadora do Partido Republicano, mas, ao mesmo tempo, revelou suas qualidades de um líder pragmático, não ideológico, que tenta resolver problemas. Obama, cujo Estado de Illinois tem um grande número de imigrantes latino-americanos, também assinou a lei. Hillary é menos clara quanto a esse assunto, tendo, primeiro, adotado um tom mais agressivo para se posicionar no centro. Mas ela colheu um vasto número de votos dos chamados eleitores "latinos" (na verdade, uma mistura de mexicanos, americanos de origem mexicana, guatemaltecos, salvadorenhos, porto-riquenhos, dominicanos, etc). Então, não importa quem ganhe, latinos e imigrantes terão um amigo na Casa Branca. A necessidade de conquistar os latinos e, aparentemente, uma compreensão mais sofisticada da América Latina produziram uma retórica mais respeitosa na campanha e, agora, oferecem a esperança de que talvez a próxima administração dedique maior atenção à região. Num discurso no Senado na noite em que Bush visitava o Brasil e a América Latina, em 2007, Obama declarou que "nós precisamos dedicar todo nosso tempo e uma atenção respeitosa a nossas relações internas no hemisfério". Hillary, que tem veiculado várias propagandas em espanhol (embora ainda não tenha feito nenhuma em português), divulgou uma declaração sobre a América Latina exclusivamente para o site da Univisión (canal de televisão de língua espanhola) na noite da Superterça, afirmando que "los países de América Latina merecen el respeto y la atención de los Estados Unidos". A declaração mais contundente e embasada sobre América Latina veio de McCain. Falando em junho para emissoras de Miami ele reafirmou a posição de seu partido a favor do livre comércio no hemisfério (leia-se: Alca) e contra a Cuba de Fidel Castro e a Venezuela de Hugo Chávez. Ainda assim, McCain, citando o presidente John F. Kennedy, descreveu os latino-americanos e os Estados Unidos como "amigos antigos e firmes, unidos pela história, experiência e determinação em fazer progredir os valores da civilização americana". McCain rejeitou "impulsos imperiais" e prometeu uma política de "respeito mútuo". "Por décadas, tanto nas administrações republicanas como nas democratas, os Estados Unidos trataram a América Latina como um parceiro menor em vez de um vizinho, um irmão mais novo em vez de um igual. A América Latina não é nosso quintal; a América do Sul e a Central não estão ?abaixo? dos Estados Unidos ... Estou ciente das contribuições extraordinárias que nossos vizinhos fazem aos EUA - do comércio à cultura, ao comprometimento com a democracia e aos direitos humanos. Nós dividimos com os vizinhos latino-americanos um profundo respeito pela fé, a família e o trabalho ... E devemos trabalhar - juntos - para criar um novo modelo de relações entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento." McCain acrescentou: "Se eleito, vou trabalhar para criar uma nova Liga de Democracias, que dará ao Brasil, Colômbia, México, Chile, Peru e outras nações da região uma voz no combate aos problemas comuns, baseados em valores comuns - voz que lhes foi negada no Conselho de Segurança da ONU". Obama poderia despertar uma gigantesca onda de mudanças nas relações EUA-América Latina se ele seguir com suas intenções sobre Cuba. Obama propôs diminuir as limitações de viagens a Cuba e remessas de dinheiro para a ilha. Com um estilo que enfatiza o diálogo, ele afirmou que estaria disposto a se encontrar com Fidel Castro. Na visão de Shannon O?Neil, que está acompanhando a eleição americana como um especialista em América Latina no importante Conselho de Relações Internacionais, uma abertura para Cuba "finalmente varreria" a retórica da Guerra Fria que continua a pesar nas relações do hemisfério e permitiria que países negociassem entre si livres da questão Cuba. Líderes precisam "parar com a troca infantil de ofensas - o que seria muito bom para a região", disse O?Neil, acrescentando que eles precisam focar suas atenções na formação de parcerias para tratar das muitas questões em comum do continente. Claro que uma mudança na retórica só será realmente efetiva se os líderes as complementarem com ações. Lula e Bush começaram bem, mas os históricos encontros interministeriais entre os dois países produziram magros resultados. E o respeito pela América Latina não evitará que McCain, Clinton ou Obama defendam, em primeiro lugar, os interesses dos Estados Unidos. Os dois democratas têm uma veia protecionista que poderia atrapalhar as negociações comerciais. Obama, por exemplo, é contra o fim da tarifa sobre o etanol brasileiro. A chave para brasileiros e cidadãos de outros países latino-americanos será conquistar o próximo presidente norte-americano em sua disposição para o diálogo e também buscar novas formas de retórica para resolver possíveis desentendimentos. Se os Estados Unidos finalmente estão transformando seu paternalismo histórico em relação à América Latina em uma atitude mais madura e de colaboração, os latino-americanos devem também superar o desafio de uma era pós-imperialista. *Kenneth Serbin é presidente da Brazilian Studies Association. O 9º Congresso Internacional da entidade acontecerá entre 27 e 29 de março, em Nova Orleans

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