Exclusivo: 'Terror contra um negro na Casa Branca'

Em trecho do livro ‘Uma Terra Prometida’, Obama conta como foi alvo de um plano hediondo para desistir da presidência

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Por Barack Obama
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O que também me impressionou foi o crescente papel que a tecnologia desempenhara em nossas vitórias. A extraordinária juventude de minha equipe nos permitiu adotar e refinar as redes digitais que a campanha de Howard Dean pusera em movimento quatro anos antes. Nossa posição de novatos nos forçava a confiar mais e mais na energia e criatividade de nossos voluntários craques em internet. Milhões de pequenos doadores estavam ajudando a impulsionar nossa operação, encaminhando links que contribuíam para espalhar nossas mensagens de campanha de maneiras que a grande mídia não era capaz, e novas comunidades se formavam entre pessoas antes isoladas umas das outras. Ao sair da Super Terça, eu estava inspirado, imaginando vislumbrar no futuro um ressurgimento da participação de baixo para cima que podia fazer nossa democracia funcionar de novo. Eu ainda não tinha entendido a extraordinária flexibilidade dessa nova tecnologia, a rapidez com que seria absorvida por grupos comerciais e utilizada pelos poderes estabelecidos, a prontidão com que seria usada não para unir as pessoas, mas para confundi-las e dividi-las - nem que um dia muitas das mesmas ferramentas que me levaram à Casa Branca seriam empregadas no sentido oposto de tudo que eu representava.

Essas revelações viriam mais tarde. Depois da Super Terça, seguimos em frente num absoluto frenesi de atividades, vencendo 11 primárias e caucuses em sequência, por uma margem média de 36%. Foi um período inebriante, quase surreal, apesar dos nossos esforços, meus e da minha equipe, para controlar nosso entusiasmo - “Lembrem-se de New Hampshire!” era um brado muito repetido -, sabendo que a batalha prosseguiria, cientes de que ainda havia muita gente torcendo por nosso fracasso.

Imagem. Barack Obamaem 2009, na Casa Branca, ao assumir a presidência dos EUA. Foto: Pete Souza/The White House

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Em The Souls of Black Folk, o sociólogo W. E. B. Du Bois descreve a “dupla consciência” dos negros americanos no alvorecer do século 20. Apesar de nascidos e criados em solo americano, moldados pelas instituições do país e imbuídos de seu credo, apesar de suas mãos laboriosas e seus corações pulsantes terem contribuído tanto para a economia e para a cultura do país - apesar disso tudo, escreve Du Bois, os negros americanos continuam sendo perpetuamente o “Outro”, sempre do lado de fora a olhar para dentro, sempre sentindo que sua “duplicidade” é definida não pelo que são, mas pelo que jamais podem ser.

Quando jovem, aprendi muito com os escritos de Du Bois. Mas, fosse pela origem e identidade dos meus pais e pela criação que recebi, fosse pela época em que me tornei adulto, nunca tive tal sentimento de “dupla consciência”. Já havia me confrontado com as implicações de minha condição multirracial e com a existência da discriminação racial. Em nenhum momento, porém, cheguei a questionar - ou de alguma maneira pus em dúvida - minha “americanidade”.

Claro, eu nunca tinha concorrido à presidência.

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Mesmo antes de meu anúncio formal, Gibbs e nossa equipe de comunicações já se ocupavam de rebater os rumores que pipocavam em programas de rádio conservadores com participação de ouvintes ou em sites irresponsáveis, antes de migrarem para o Drudge Report e para a Fox News. Relatos diziam que eu tinha estudado numa madraça indonésia, e eles ganharam tanta força que um correspondente da CNN se deu ao trabalho de viajar até a escola onde cursei o ensino fundamental em Jacarta e encontrou um bando de meninos uniformizados à moda ocidental escutando New Kids on the Block em iPods. Havia alegações de que eu não era cidadão americano (ilustradas por uma fotografia na qual apareço trajando roupas africanas no casamento de meu meio-irmão queniano). À medida que a campanha avançava, mais mentiras sinistras começavam a circular. Esses novos boatos não tinham a ver com minha nacionalidade, e sim com uma “estrangeiridade” de uma espécie mais familiar, mais doméstica, de matizes mais sombrios: diziam que eu vendera drogas, que trabalhara como michê, que tinha ligações marxistas e era pai de muitos filhos ilegítimos.

Álbum familiar. Obama no colo da mãe Ann Dunhan, então já separada do marido. Foto: Obama-Robinson Family Archives

Era difícil levar essas coisas a sério, e pelo menos de início não houve muita gente que levasse - em 2008, a internet ainda era muito lenta, disseminada de forma muito irregular, e muito distante do noticiário dos meios de comunicação tradicional para penetrar diretamente na cabeça dos eleitores. Mas havia maneiras indiretas, mais sutis, de questionar minhas afinidades.

Depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro, por exemplo, eu tinha passado a usar alfinete de lapela com a bandeira dos Estados Unidos, o que era considerado uma forma de expressar solidariedade nacional diante daquela enorme tragédia. Então, ao longo do debate sobre a guerra de Bush contra o terrorismo e a invasão do Iraque - vendo a campanha de ataques pessoais contra John Kerry e ouvindo o patriotismo dos que se opunham à Guerra do Iraque ser posto em dúvida por gente como Karl Rove, vendo meus colegas no Senado, todos ostentando alfinetes de lapela com bandeira, votarem de bom grado por cortes orçamentários no financiamento de programas para veteranos -, discretamente abandonei esse hábito. Não foi um ato de protesto, e sim uma maneira de lembrar a mim mesmo que o conteúdo do patriotismo é muito mais importante do que a simbologia. Ninguém pareceu notar, especialmente porque a maioria dos senadores - incluindo o ex-prisioneiro de guerra John McCain, da Marinha - aparecia o tempo todo sem bandeirinhas na lapela.

Amigos. Obama e o presidente eleito Joe Biden, então seu vice, em 2010. Foto: Pete Souza/The White House

Assim sendo, em outubro, quando um repórter em Iowa me perguntou por que eu não usava uma, respondi com toda a sinceridade que não me parecia que a presença ou ausência de um símbolo à venda em qualquer esquina pudesse servir como medida do amor de alguém pelo país. Não demorou para que os analistas conservadores batessem na tecla do suposto significado da minha lapela vazia. Obama odeia a bandeira, Obama desrespeita nossos soldados. Meses depois, ainda insistiam nisso, o que começou a me irritar. Minha vontade era perguntar por que só os meus alfinetes de lapela, e não os de nenhum candidato a presidente antes de mim, de repente atraíam tanta atenção. Como era de esperar, Gibbs me dissuadiu de fazer esse tipo de desabafo público.

“Por que dar a eles essa satisfação?”, aconselhou. “Você está ganhando.”

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Ele estava certo. Mas não me deixei convencer com tanta facilidade quando vi o mesmo tipo de insinuação dirigido à minha mulher. 

Depois de Iowa, Michelle continuou a brilhar na campanha eleitoral. Com as meninas na escola, limitamos sua aparição a disputas acirradas e suas viagens basicamente aos fins de semana, mas, aonde quer que fosse, ela era engraçada e cativante, perspicaz e direta. Falava sobre criação de filhos e o esforço para equilibrar as demandas do trabalho e da família. Descrevia os valores que lhe ensinaram - o pai que jamais faltou um dia de trabalho apesar da esclerose múltipla, a grande atenção que a mãe dava à sua educação, a família na qual o dinheiro faltava e o amor sobrava. Algo saído do universo de Norman Rockwell ou do seriado Leave It to Beaver. Meus sogros eram a personificação perfeita dos gostos e das aspirações que costumamos considerar exclusivamente americanos, e não conheço ninguém mais convencional do que Michelle, cujo prato preferido é hambúrguer com batata frita, que gostava de ver reprises de The Andy Griffith Show e que por nada no mundo perderia a oportunidade de passar um sábado à tarde fazendo compras no shopping.

Nobreza. Obama se despede da rainha Elizabeth II, em Londres, em 2011. Foto: Pete Souza/The White House

E ainda assim, pelo menos segundo alguns comentaristas, Michelle era… diferente, imprópria para ser primeira-dama. Parecia uma pessoa “raivosa”, segundo diziam. Um segmento da Fox News a descreveu meramente como “a mãe das filhas de Obama”. E não era só a imprensa conservadora. A colunista do New York Times Maureen Dowd escreveu que, quando Michelle me descrevia em seus discursos, em tom de brincadeira, como um pai sofrível que deixava o pão embolorar na cozinha e a roupa suja espalhada pela casa (arrancando sempre uma risada solidária do público), não estava me humanizando, e sim me “emasculando”, e com isso diminuindo minhas chances de ser eleito.

Comentários desse tipo eram pouco frequentes, e para alguns de nossos colaboradores faziam parte da baixaria habitual das campanhas políticas. Mas não era assim que Michelle encarava a questão. Ela compreendia que, além da camisa de força na qual se esperava que as mulheres de políticos permanecessem (a companheira amorosa e submissa, graciosa, mas não confiante demais; a mesma camisa de força que Hillary tinha rejeitado, uma escolha pela qual continuava pagando um alto preço), havia um conjunto adicional de estereótipos aplicados a mulheres negras, expressões familiares que elas iam absorvendo pouco a pouco como toxinas a partir do dia em que viam pela primeira vez uma boneca Barbie loura ou despejavam em suas panquecas a calda doce com a figura de Aunt Jemima no rótulo. A ideia de que não correspondiam aos padrões estabelecidos de feminilidade, que suas bundas eram grandes demais, e seus cabelos crespos demais, que eram muito escandalosas, ou exaltadas, ou ofensivas com seus companheiros - que eram não apenas “emasculadoras”, mas masculinas.

Michelle tinha administrado esse fardo emocional a vida inteira, em grande parte sendo extremamente cuidadosa com a aparência, mantendo o controle de si mesma e de seu ambiente e se preparando de forma meticulosa para tudo, mas ao mesmo tempo não se deixando intimidar a ponto de se tornar alguém que não era. O fato de ter preservado sua integridade com tanta graça e dignidade, assim como tantas mulheres conseguem fazer a despeito de tantas mensagens negativas, é extraordinário.

Barack e sua mulher Michelle Obama em março de 2009. Foto: Pete Souza/White House

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Mas um ou outro deslize fazem parte da natureza de uma campanha presidencial, claro. No caso de Michelle, aconteceu pouco antes das primárias de Wisconsin, quando, durante um discurso no qual se dizia impressionada com a quantidade de pessoas entusiasmadas com nossa campanha, ela afirmou: “Pela primeira vez em minha vida adulta, eu de verdade sinto orgulho de meu país… porque acho que as pessoas estão ansiosas por mudanças”.

Foi um exemplo clássico de gafe - algumas palavras ditas de improviso que poderiam ser tiradas de contexto e usadas como arma pela imprensa conservadora -, uma versão deturpada do que ela vinha falando tantas vezes em seus discursos a respeito de sentir orgulho da direção que nosso país estava tomando, o aumento promissor da participação do povo na política. A culpa foi em grande parte minha e de minha equipe; pusemos Michelle na estrada sem os discursos escritos, as sessões de preparação e as instruções que eu recebia o tempo todo, uma infraestrutura que me mantinha mobilizado e atento a tudo. Foi como expor um civil ao fogo cruzado sem colete à prova de bala.

Fosse como fosse, os repórteres partiram para o ataque, conjeturando sobre os possíveis danos que os comentários de Michelle causariam à campanha, e indagando até que ponto revelavam os verdadeiros sentimentos do casal Obama. Entendi que aquilo era parte de um plano mais amplo e hediondo, um retrato deliberadamente negativo construído pouco a pouco a partir de estereótipos, estimulado pelo medo, visando a alimentar uma apreensão generalizada em relação à ideia de um negro tomando as decisões mais importantes do país com sua família negra na Casa Branca. Mais do que me preocupar com as consequências para a campanha, porém, eu lamentava ver o quanto aquilo magoava Michelle - o quanto esse tipo de coisa fazia minha mulher, tão forte, inteligente e bela, duvidar de si mesma. Depois desse passo em falso em Wisconsin, ela me lembrou que nunca tinha desejado ser o centro das atenções e disse que, se sua presença na campanha prejudicava mais do que ajudava, ela ficaria em casa. Respondi que a partir de então minha equipe lhe daria mais apoio, e garanti que ela era uma figura muito mais atraente para os eleitores do que eu jamais seria. Mas nada que eu dissesse era capaz de fazê-la se sentir melhor. 

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