Texto teatral inédito de Franz Keppler narra vida de Caravaggio

Peça nunca encenada ganha edição em livro e retrata a figura polêmica do pintor barroco

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Por Donny Correia
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Um marginal inescrupuloso, um bêbado brigão, um assassino impune, um pintor de sensibilidade única, um inventor séculos à frente de seu tempo, unanimidade na história da arte. Todos esses predicados nos levam a Michelangelo Merisi, dito Caravaggio (1571-1610). Embora muito já se tenha especulado sobre sua vida, Caravaggio continua uma incógnita. Exatamente por isso são tão diversas as referências à sua vida e arte, em trabalhos literários e cinematográficos. Por outro lado, o desencontro que há entre as verdades e os mitos dão margem a constantes investidas autorais que visam a compor um panorama minimamente coerente a respeito dessa figura tão importante na compreensão da era barroca, que peregrinou por diversas paragens em busca de hedonismo e transcendência. É o caso do texto teatral Caravaggio, de Franz Keppler, publicado pela editora Giostri.

Em 'A Captura de Cristo' (1602), Caravaggio se retratou à direita Foto: National Gallery of Ireland

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Keppler, dramaturgo premiado, autor de Nunca Ninguém me Disse Eu te Amo (2007) e Frames (2009), recebeu uma encomenda, há alguns anos, do produtor e diretor Fábio Santana para escrever uma peça que desse conta da intensa trajetória de Caravaggio, para ir aos palcos de São Paulo. O processo meticuloso de construção da dramaturgia passou pela pesquisa de diversas fontes e recorreu até mesmo ao esoterismo. “Chegamos a fazer o mapa astral deste gênio considerado maldito, e jogamos as cartas do tarô para ele”, conta o autor ao Aliás. Tudo parecia encaminhado para um espetáculo portentoso quando, em 2016, com apenas 47 anos, Fábio Santana, que gozava o êxito da peça Chet Baker, estrelada pelo ex-Titã Paulo Miklos, morreu. Caravaggio estagnou e, pouco depois, o projeto de encenação foi suspenso.

No entanto, o potencial entusiasta conta, agora, com o texto original da peça, que vem somar esforços no conjunto de tratados e obras que especularam a biografia fragmentada do pintor e deixa transparecer um cuidado e uma inventividade análogos à própria poética da personagem principal.

O primeiro elemento estético que se destaca na escrita de Keppler é a tentativa de criar uma polifonia cronológica que sobrepõe, em camadas estruturais, diversas passagens espalhadas num sem-número de narrativas a respeito do pintor. Dividido em onze cenas, o texto imagina a figura onipresente de uma cigana que aparece frequentemente para um Caravaggio febril e agonizante, lançando luz sobre as agruras pelas quais já passara e apontando novos dilemas pelos quais ele ainda passará até Port École, onde Caravaggio morreu, aos 38 anos. As rubricas que indicam uma dinâmica dramatúrgica no cenário dão bem a ideia da diversidade de ambientes, épocas e personagens que se encontram e se separam, rompem e reatam relações, discutem arte, corrupção e sexo. Enfim, ilustram, com ousadia estética, um dado que o cineasta inglês Derek Jarman (1942-1994) já havia aferido em sua cinebiografia do pintor, de 1985: não há como dissociar vida e obra de alguém tão controverso.

Porém, Keppler vai além do que Jarman pensara. Com um certo didatismo próprio da escrita teatral, em que a palavra e os gestos largos devem contextualizar o espectador, mais do que uma tomada de efeito ou uma expressão em close cinematográfico, o leitor encontra um exame minucioso de uma Roma do final do século 16, onde a ostentação da Igreja e sua sanha por impostos e por obras de arte monumentais se choca contra uma periferia superpopulosa, cheia de pequenos mercadores, aspirantes a artistas e escultores, prostitutas, cafetões e boêmios assassinos. Desse ambiente, em particular, Caravaggio retira inspiração para seus trabalhos mais icônicos. Por frequentar os locais de mais baixa reputação, o pintor, com frequência, baseou-se em figuras mundanas para revolucionar a arte sacra e levar às suas telas cenas bíblicas protagonizadas por personagens absolutamente humanos. Não só isso, Caravaggio, amiúde, colocava-se dentro de suas cenas, ora como testemunha ocular de uma imolação infligida contra um santo, ora como protagonista, na figura de um Golias decapitado pelo efebo rei Davi.

A reação eclesiástica sobre a poética de Caravaggio também está presente na dramaturgia de Keppler. Considerado vulgar e invejoso por alguns mercadores, o pintor conquista a admiração do Cardel Del Monte, que, de fato, o abrigou em suas dependências por um período. O clérigo afirma que jamais havia visto obras tão impactantes e dá ao problemático artista a oportunidade de se estabelecer no ambiente do mecenato católico.

No entanto, Caravaggio era um personagem maior que sua própria vida, uma força indomável da natureza. Ser o principal artista de seu tempo não era o suficiente, e o texto nos apresenta várias passagens em que a ira despertada por pintores rivais, a inclinação indomável pelo jogo, a bebida, as prostitutas e os rapazes que o idolatravam levam Caravaggio para uma espiral de irracionalidades e graves crimes. Hoje, sabemos que o pintor cometeu, de fato, ao menos um assassinato. Um mote recorrente na obra de Keppler, “Sem esperança, sem medo”, revela um niilismo precoce na filosofia de vida de alguns artistas que se viam deslocados de seu tempo, cujos trabalhos apontavam revoluções que só se concretizariam no modernismo do século 20. Para além de uma obra que denote o domínio do pincel e das formas, Caravaggio nos é apresentado como alguém que está mais empenhado em dessacralizar as instituições morais, religiosas e artísticas e dar voz a uma classe considerada escória irritante num projeto corporativo muito maior, do Papa Clemente VIII.

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Como é recorrente na história, depois de ser excomungado e traído, quando nada mais pode haver além da morte miserável, Caravaggio é reconhecido por sua maestria e absolvido pela justiça, que o condenara à morte pelo assassinato de Ranuccio Tomassoni. Contam algumas fontes que o rapaz fora amante do pintor, mas, na narrativa de Franz Keppler é retratado como um rival direto na disputa de uma mulher. Toda a via crúcis, segundo o texto, é ilustrada pela projeção de telas seminais do pintor, como Baco Doente, Menino Mordido por um Lagarto e Os Trapaceiros. Este recurso tecnológico não só aponta orientações quanto à direção de arte, à iluminação de palco e a busca do chiaroscuro caravaggiesco em prol de uma unidade artística, como também promete uma imersão atemporal a que o espectador se submeterá.*DONNY CORREIA É DOUTOR EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP, É CRÍTICO E ESCRITOR, AUTOR DE ‘CINEFILIA CRÔNICA: COMENTÁRIOS SOBRE O FILME DE INVENÇÃO’

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