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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|The Murdoch Street Journal

Venda do jornal de economia mais importante do mundo é um risco para o jornalismo

Atualização:

A novela finalmente chegou ao fim. Com o desfecho previsto: Rupert Murdoch dobrou as últimas resistências da família Bancroft, e sua News Corporation comprou a Dow Jones Corporation, proprietária do diário The Wall Street Journal. Valor da transação: US$ 5 bilhões (ou US$ 60 por ação). As ações da Dow Jones valiam em torno de US$ 36 quando, em 1º de maio, a CNBC noticiou o interesse de Murdoch em arrematá-las. De imediato, subiram para US$ 56. Mas teriam caído com a mesma rapidez se Murdoch desistisse do negócio e nenhum outro interessado se apresentasse. O investidor Warren Buffett, a General Electric e outros ameaçaram entrar no leilão, mas desistiram ao avaliar melhor a obstinação e o poder de fogo do magnata australiano. Para Murdoch foi mais um negócio da China. Com circulação diária de mais de 2 milhões de exemplares, o WSJ é o segundo jornal mais lido dos EUA (o primeiro é o mcpaper USA Today) e o mais respeitado no que diz respeito à cobertura de assuntos econômicos (suas reportagens sobre show business são mais abrangentes que as do Variety e quejandos). Para o jornalismo, foi um desastre, similar à eventual compra de qualquer um dos três maiores jornais do Brasil pelo bispo Edir Macedo. Para os Bancroft, bem, a família é enorme, vive espalhada entre Roma e o Havaí, e, naturalmente, dividiu-se. Uns foram contra a venda de cara. "Qualquer um, menos Murdoch!", estrilou Elizabeth Steele, inflamada integrante do board da Dow, daquelas para quem o jornalismo é (ou deveria ser), em primeiro lugar, pentecostalista, e, só depois, lucrativo. Ou seja, acima de tudo, fiel a determinados princípios éticos e a um padrão de excelência profissional. Os Bancroft poderiam ter oferecido conteúdo e parceria ao canal de negócios, Fox Business Channel, que Murdoch pretende inaugurar em outubro. Mas, em vez de vender só o leite, negociaram a vaca. De resto, sagrada. Desde 1902 que a família tocava, de forma invisível, o WSJ, procurando mantê-lo irrestritamente atrelado aos ideais do capitalismo, mas sem filiação partidária ostensiva (o último candidato a presidente endossado pelo jornal foi o republicano Herbert Hoover, em 1928). Seus editoriais e colunistas podem ser irritantemente conservadores, mas a redação sempre trabalhou com espantosa liberdade e frutuosa competência, tradição imposta pelo legendário editor Barney Kilgore, que lá deu as cartas nas décadas de 40, 50 e 60. Muitas das denúncias contra ações fraudulentas no mercado de capitais, nos anos 80 e 90, que renderam ao WSJ vários prêmios Pulitzer, talvez não chegassem aos leitores se o jornal já estivesse sob a tutela de Murdoch; se já fosse, enfim, The Murdoch Street Journal. Murdoch é um misto de polvo e trator. Só na Austrália controla mais de 60% da imprensa, é dono da mais poderosa operadora de TV a cabo, de metade da Qantas (a maior empresa aérea do país) e de toda a liga de rugby. Também fez uma limpa no mercado internacional. Além de 93% da Star TV e 100% da HarperCollins, a News Corp. possui mais de uma centena de revistas e jornais, a Fox TV, os estúdios de cinema da Fox e interesses em empreendimentos televisivos de cinco continentes. Seu império jornalístico já contava com 175 jornais antes da compra do WSJ. Nele, o sol nunca se põe - e há sempre, ao fundo, um televisor ligado (também é dele o programa mais visto no mundo, "The American Idol") e um computador acessando o MySpace. Compará-lo a Charles Foster Kane é abusar do eufemismo. Seu maior defeito não é ser de direita, é não ter escrúpulos e só pensar em acumular poder. Deram-lhe um apelido perfeito: "Aussie vulgarian". Os australianos não primam pela sofisticação, mas Murdoch abusa do direito de cultuar e disseminar a vulgaridade, o sensacionalismo, o nivelamento por baixo. Ted Turner, dono da CNN, principal concorrente da Fox News, já o comparou a Hitler. Bruce Page, ex-editor do britânico Sunday Times, comprado e encolhido por Murdoch, preferiu compará-lo a Falstaff - uma injustiça com o boêmio e glutão personagem shakespeariano. Murdoch não tem o menor constrangimento de usar suas publicações e emissoras de tevê para seduzir políticos e alterar legislações criadas para evitar concentração de poder, monopólios e outros malefícios à democratização da mídia. Perseguiu o senador Edward Kennedy por sua vigilância às regras da Comissão Federal de Comunicações dos EUA (FCC, na sigla em inglês), que contrariavam os interesses da Fox Corp. A Fox News (vulgo "Faux News") é linha-auxiliar confessa do governo Bush, promiscuidade que o comentarista do New York Times Paul Krugman caracterizou, muito polidamente, como "conflito de interesses". Suas ligações com os republicanos transcendem o campo das idéias. E do decoro. Ele ofereceu US$ 4,5 milhões de adiantamento por um livro ao então bambambã do Congresso americano, Newt Gingrich, não porque farejasse um best seller, mas porque necessitava de sua ajuda para abrir brechas na legislação da FCC. Até o beneficiado assustou-se com a proposta. Apesar de ferrenho anticomunista, não economiza agrados ao governo chinês. Não quer perder o fabuloso mercado que de certa forma já controla com a sua tevê por satélite, a StarTV, sediada em Hong Kong desde 1993. Quatro anos atrás, tirou a BBC do cardápio da tevê por assinatura BSkyB porque os manda-chuvas de Pequim não gostavam da maneira crítica como a emissora britânica cobria a China. Em seguida, não apenas suspendeu a publicação das memórias do último mandatário britânico em Hong Kong, Chris Patten, que sairiam pela HarperCollins, conglomerado editorial formado por Murdoch em 1989, como ofereceu US$ 1 milhão à filha de Deng Xiaoping para que escrevesse a biografia do pai, um monumento ao clichê, à propaganda e à pieguice. O que mais se temia - a interferência de Murdoch na linha editorial do WSJ - pode até demorar, em função, sobretudo, das ameaças de cancelamentos de assinaturas que se avolumaram desde o início das negociações, mas na certa ocorrerá. Ele prometeu aos Bancroft e demais membros da cúpula da Dow Jones que respeitaria a liberdade editorial do jornal. Fez o mesmo com a família Carr, por ele usada para comprar The News of the World, sua ponta-de-lança na Inglaterra. Também assegurou a Dorothy Schiff que não mexeria na postura liberal do New York Post, que dela comprou em 1976, e o que se viu foi uma guinada repentina do jornal para a direita. Ao empalmar o londrino Sunday Times, reprisou as juras de sempre, para, na primeira oportunidade, demitir o editor Harold Evans, e pôr o jornal a serviço de Margaret Thatcher - e dos interesses da News Corp., claro. A única publicação em cuja linha editorial Murdoch não interferiu foi o semanário alternativo The Village Voice, por ele tonificado financeiramente em 1977, a pedido de Clay Felker, que também editava as revistas New West e New York, ambas beneficiadas pelo australiano. Na primeira oportunidade, passou a perna em Felker. Tem tudo para abafar no Brasil.

Opinião por Sérgio Augusto
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