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Todos os direitos a todos

Tratamento do Exército ao casal de militares gays é uma violação dos direitos humanos, dizem juristas

Por Silvia Pimentel e Bernardo P. L. Rodrigues Guerra
Atualização:

Em 5 de junho, teve início em Brasília a Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBT): iniciativa inovadora do governo federal para a proteção dos direitos humanos de pessoas das diversas orientações sexuais e identidades de gênero. A conferência tem por objetivo a definição de um plano nacional de políticas públicas voltadas à população GLBT. Dois dias antes deste histórico evento, foi aprovada, por consenso, na 38ª Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), a resolução "Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero". Apresentada por iniciativa da delegação brasileira, a resolução expressa preocupação pelos atos de violência e pelas violações aos direitos humanos correlatas, motivados pela orientação sexual e pela identidade de gênero. Assim, encarrega a Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos de incluir esse tema em sua agenda e solicita ao Conselho Permanente que informe a Assembléia Geral da OEA sobre o cumprimento desta resolução. A comunidade internacional tem igualmente manifestado grande preocupação com as inúmeras violações de direitos humanos baseadas em orientação sexual e identidade de gênero , que constituem um padrão global arraigado, com sérias e nefastas conseqüências para os indivíduos vítimas das violações e para a humanidade como um todo. Apesar destes importantes avanços, o País foi palco, recentemente, de uma desarrazoada demonstração de poder por parte do Exército, ao empregar meios desproporcionais aos estritamente necessários para a prisão de um suposto desertor. O episódio teria passado despercebido se não fosse a ação cinematográfica do Exército e não fosse o fato de o sargento Laci Marinho de Araújo, juntamente com seu companheiro, o sargento Fernando de Alcântara de Figueiredo, terem sido matéria de capa de uma revista semanal, em cuja entrevista assumiam publicamente a sua homossexualidade e seu relacionamento estável. A justificativa para a prisão do sargento foi fundamentada, conforme declarado pelo Exército, no fato de ele ser um desertor, e não em discriminação por sua orientação sexual. Mas esse episódio traz à tona a necessidade de se refletir sobre as discriminações baseadas em orientação sexual e identidade de gênero, as quais vêm, muitas vezes, combinadas com outras formas de discriminação e têm, por conseqüência, graves violações aos mais básicos direitos humanos e à cidadania. Se o grau de democracia de um país pode ser medido pelo respeito às liberdades e direitos fundamentais de suas minorias, cabe a todo Estado democrático agir para modificar padrões sociais e valores que ofendam a dignidade humana de todas as pessoas. Padrões estes que foram sedimentados ao longo de um passado discriminatório e que contam com a aprovação ignorante de muitas pessoas e instituições. O tema nos remete à discussão sobre o projeto de lei que prevê a criminalização de condutas homofóbicas no Brasil. Embora reconheçamos que a criação de novos crimes não deva ser banalizada, é importante admitir que o processo histórico de especificação dos sujeitos de direito criou condições para a emergência de novas e justas reivindicações. O indivíduo passou a ser considerado em sua concretude e especificidade. Assim, embora seja louvável a posição crítica a um direito penal estritamente repressor, importa reconhecer que se fechar à criação de certos novos tipos penais poderia significar grave negligência quanto à garantia das liberdades de muitos, só agora conscientes e politizados acerca de seus direitos. A "jurisprudência" que vem sendo firmada pelas Nações Unidas sobre o tema, construída a partir de resoluções da Comissão de Direitos Humanos, observações finais dos comitês de Direitos Humanos, manifestações de relatores especiais, da secretaria geral e do alto comissariado para os Direitos Humanos, revela, de forma consistente, sua postura: é necessário combater estas violações através da constitucionalização do princípio de não discriminação, explicitando-se menção a esta forma específica e através de medidas legislativas punitivas, de leis e políticas afirmativas que favoreçam a superação deste tipo de discriminação, da qual são vítimas as minorias sexuais, compostas por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Além disso, os Princípios de Yogyakarta (série de princípios jurídicos internacionais sobre a aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos às violações baseadas em orientação sexual e identidade de gênero) corroboram essa ampla proteção aos direitos humanos, em consonância com a concepção contemporânea do termo, evidenciada pela universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relação dos direitos humanos. Assim, devem ser assegurados, às pessoas de todas as orientações sexuais e identidades de gênero, direitos civis e políticos, e direitos econômicos, sociais e culturais, para uma vida plenamente digna. A orientação sexual e a identidade de gênero são essenciais para a dignidade e a humanidade de todo indivíduo, não devendo ser motivo de discriminação ou abuso. Embora os direitos humanos consolidados nos Princípios de Yogyakarta já se encontrem disciplinados em vários instrumentos internacionais, é fundamental que estes direitos sejam especificados e expressamente assegurados às pessoas das mais diversas orientações sexuais e identidades de gênero. A ausência de um questionamento crítico - no marco dos valores de igualdade, respeito, eqüidade e diversidade - sobre a normatização jurídica fortemente restritiva das diversas formas de exercício da sexualidade tem servido para reforçar e reproduzir preconceitos, estereótipos e discriminações sociais, além de muita hipocrisia e sofrimento. Em um Estado Democrático de Direito como o Brasil, não se pode tolerar quaisquer violações aos direitos humanos, muito especialmente à dignidade existencial de cada pessoa humana. Há que se garantir o direito básico de todos a ter direitos. *Silvia Pimentel é professora doutora em Filosofia do Direito - PUC/SP e integrante do Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher - CEDAW/ONU *Bernardo P. L. Rodrigues Guerra é advogado, doutorando em Filosofia do Direito pela PUC-SP e Professor de Direitos Humanos da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do RJ QUARTA, 4 DE JUNHO Estrelato fora da caserna O sargento do Exército Laci de Araújo é preso, acusado de deserção, após relatar seu relacionamento homossexual com o sargento Fernando Figueiredo, no programa Superpop, da RedeTV! e na revista Época. Ele alegou que se ausentou do Exército por problemas de saúde.

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