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Todos os males da corrupção

Falta de consistência programática e legislação frágil abrem espaço para eleição de corruptos e clientela

Por Rinaldo Gama
Atualização:

Compra de votos, venda de cargos, trocas escusas. Em uma palavra: corrupção. Nas últimas semanas, uma sucessão de denúncias, julgamentos e cassações pôs outra vez em primeiro plano no País este que deveria ser considerado o antônimo perfeito da arte da política - mas,muitas vezes, por aqui, ganha ares de seu sinônimo. Sai o empenho pelo bem comum e entra o vezo do culto aos interesses pessoais. Identificado, em suas origens, com as etapas de degeneração de um corpo vivo que o levariam inexoravelmente à morte, o termo corrupção chegou à esfera política trazendo consigo a mesma ideia de uma decomposição que sinaliza o fim de algo. E o que estaria esgotado na política brasileira? Para o cientista político Helio Jaguaribe, é o sistema partidário, "nosso maior problema". Segundo ele, "os partidos brasileiros não têm uma verdadeira realidade, quer dizer não são reconhecidos pela opinião pública por suas diretrizes e as especificidades de seu programa". Resultado: o eleitor vota não por convicções políticas e sim por motivações pessoais. Atendo: Jaguaribe em sua casa, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro: "Não subertimo a capacidade de autorreforma do Legislativo, mas o papel do Executivo nessas horas é decisivo" Isso ajudaria a compreender fenômenos como o do PMDB, a maior agremiação política do Brasil , que não passa, na definição de Jaguaribe, ecoando de certo modo as palavras do senador Jarbas Vasconcelos, "de uma mera agregação de candidaturas, sem nenhuma definição própria; o veículo patente da política de clientela" - essa que também poderia atender pelo nome de "política de resultados". É de olho nela, acredita Jaguaribe, que os corruptos procuram se eleger. Na opinião do cientista político, o que se vê com mais frequência no País é a eleição de gente corrupta e não a corrupção dos eleitos. "Evidentemente, eu não excluo a possibilidade da existência de pessoas que se corrompam depois de eleitas, porém creio que a maior parte dos casos que vêm à tona seja de corruptos que se elegeram." De acordo com Jaguaribe, "à medida que, a partir de uma nova legislação e uma nova cultura política sejamos capazes de conduzir o Brasil a um sistema partidário representativo, programático, dotado de estabilidade, fatores como a corrupção ficarão reduzidos a um nível muito menor do que hoje em dia". Ex-professor das Universidades Harvard e Stanford e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes) e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Jaguaribe, de 85 anos, confia na capacidade de autorreforma do Legislativo. Contudo, ressalta que, historicamente, a influência do Executivo nesses quadros é decisiva. Com sua altíssima popularidade, o presidente Lula poderia empreender tais mudanças? "Considero Lula um homem inteligente, mas sem os traços de um líder redentor - ele tem uma disposição à acomodação." Leia a seguir a entrevista exclusiva concedida por Helio Jaguaribe ao Aliás. Nas últimas semanas, denúncias sobre procedimentos ilícitos voltaram a corroer a imagem dos políticos no País, nas mais diferentes esferas e poderes. Por que a corrupção está de tal modo entranhada na história do Brasil? Eu não creio que a corrupção na política brasileira seja significativamente superior à média presente na política internacional. Há outros países, inclusive europeus, nos quais os sinais de corrupção são evidentes. Portanto, o Brasil não é um caso perigosamente marcado pela corrupção; ele está dentro da média internacional. Mas convém fazer uma observação particularmente relevante para a situação brasileira. Estou me referindo à distinção entre o corrupto que procura se proteger conseguindo um cargo eletivo e aquele que, num cargo eletivo, se deixa corromper. Falando de um ponto de vista impressionista, isto é, sem me basear em pesquisas científicas, eu acredito que, no Brasil de hoje, o primeiro caso seja mais frequente, ou seja, o que temos atualmente é muito mais a figura do corrupto que, usando o dinheiro da corrupção, procura se eleger a fim de alcançar imunidade. Em todos os lugares do mundo, os corruptos procuram formas de escapar da lei. Aqui, a maneira mais fácil de fazer isso é se eleger. Mas não são extremamente comuns os casos de políticos que assumem seus cargos com um patrimônio modesto e em pouco tempo já o multiplicaram muitas vezes? Preciso frisar de novo que não falo com base em algum dado científico; estou me baseando na minha prática de observador. Eu suponho que, em primeiro lugar, os corruptos que se elegem, continuem corruptos no cargo. Portanto, boa parte dos casos de corrupção - eu diria até a maioria - que vêm à tona digam respeito aqueles corruptos que se elegeram. Agora, evidentemente, não excluo a possibilidade da existência de pessoas que se corrompam depois de eleitas, quer dizer: ao chegarem ao cargo eletivo, descobrem que ele pode lhes proporcionar muitas facilidades para o enriquecimento e, aí, se corrompem. Mas, na minha opinião, esses casos são minoritários. São recorrentes os casos de "sinais exteriores de riqueza" que muitos políticos nacionais, apesar de fazerem questão de cultivar, procuram esconder do fisco, dos tribunais eleitorais, da opinião pública, valendo-se de estratagemas conhecidos - passar os bens para o nome de parentes, por exemplo. Como explicar essa arriscada vaidade? Ela não surpreende se você pensar em quem foi eleito. Antes de se elegerem, provavelmente esses corruptos já cultivavam a ostentação. De certo modo, só mantiverem esse hábito ao chegar ao Parlamento, a um cargo executivo, etc. Historicamente, as relações entre moral e política foram sedimentando ideias distintas de corrupção, baseadas em quanto haveria de disposições individuais ou da natureza da política em si nos atos dos corruptos. O senhor acredita que, atualmente, quando se avalia a corrupção brasileira, leve-se mais em consideração os aspectos ligados à moralidade individual em detrimento de uma análise das possíveis fragilidades da legislação, da estrutura partidária, etc., que permitiriam sua prática? A rigor, a prática e a legislação brasileiras não implicam que os eleitos sejam necessariamente corruptos. Em geral, a corrupção é algo que precede a eleição - como eu disse, é mais comum no Brasil que um corrupto procure se proteger no cargo eletivo do que a corrupção de um eleito. É claro que existe sempre na corrupção um dado individual. Ao mesmo tempo, na medida que se multiplicam os casos de corrupção, isso vira um fenômeno sociológico, político. Se os corruptos se fazem eleger, o Judiciário estaria desrespeitando a "vontade das urnas" quando promove a cassação de eleitos? Aí estamos dentro de uma situação muito difícil, mas veja: para não chegarmos a isso, seria necessária uma legislação que poderia se tornar perigosa - aquela que determinasse que todo candidato a um cargo eletivo tivesse sua vida inteiramente escrutinada, de maneira que fossem impedidos de concorrer aqueles que já comparecessem com marcas de corrupção. Essa medida, em princípio correta, poderia também ser usada abusivamente para eliminar certos candidatos, sob a alegação falsa de corrupção. De qualquer maneira, eu sou favorável a isso porque acredito que seja mais fácil controlar o abuso do que, por exemplo, o enriquecimento ilícito. Em outros países, o que vemos é uma clarificação natural muito nítida da vida pregressa do candidato. A declaração prévia de bens é uma medida saneadora e muito aceitável. Os brasileiros não sabem quem elegem? Não, não sabem. Precisaríamos dessa clarificação sobre os candidatos, inclusive do ponto de vista judicial. Isso aperfeiçoaria o sistema. Comparando o cenário atual com o que ocorria antes, não avançamos nessa frente? Ou teríamos regredido? Onde foi que erramos? O Senado, por exemplo, carece de nomes como Jefferson Péres (1932-2008), considerado um dos sustentáculos da ética no Legislativo até mesmo por seus adversários? Eu não estou acompanhando isso de modo sistemático e científico para lhe dar uma resposta precisa. Mas meu sentimento é de que não avançamos muito. Não regredimos, mas evoluímos pouco. Quanto ao Senado, eu digo que continua a haver espaço para políticos como Jefferson - necessários para manter de pé a ética, a seriedade e o respeito pelas instituições democráticas. A ''política de resultados'' - ou seja, a conquista de cargos eletivos, públicos, apenas para alcançar imunidade - evidentemente desvirtua a função do político. Passa longe de quem se elege com tais propósitos a noção de bem comum que deveria nortear o exercício da política. Ainda assim, é bastante frequente que esses políticos se reelejam, que mantenham mandatos duradouros. Como explicar isso? Há vários fatores em jogo, mas eu diria que o mais importante é o fato de que o Brasil, apesar de seu longo histórico de país democrático, ainda não conseguiu consolidar um sistema partidário responsável e, portanto, apropriado para gerir uma democracia. Nossos partidos são legendas que os políticos põem e tiram como quem põe e tira uma camisa. Isso é grave. O principal problema político brasileiro é a falta de consistência partidária. Que significa essa inconsistência? E como seria possível superá-la? Os partidos brasileiros não têm uma verdadeira realidade, quer dizer não são reconhecidos pela opinião pública pelas diretrizes e as especificidades de seus programas, em relação aos quais eles, partidos, seriam fiéis. No Brasil, os partidos têm pouca especificidade e menos fidelidade ainda em relação a seus programas. Como poderíamos alterar isso? Promovendo uma mudança em duas frentes: a legal e a cultural. À medida que, a partir de uma nova legislação e uma nova cultura política sejamos capazes de conduzir o País a um sistema partidário representativo, programático, dotado de estabilidade, fatores como a corrupção ficarão reduzidos a um nível muito mais baixo do que hoje em dia. Claro que, no plano cultural, dos hábitos políticos arraigados, a evolução sempre se dá na velocidade comum a esses processos - ou seja, raramente é algo rápido. Por outro lado, no âmbito legal, podemos ter mudanças num ritmo mais veloz. Pode-se fazer rapidamente uma legislação que, por exemplo, torne mais difícil aos corruptos buscar um mandato, por meio, como frisei antes, de uma clarificação completa de sua vida pregressa; que dificulte a troca de partidos depois da eleição; que garanta maior fidelidade ao programa partidário, etc. Uma legislação mais rigorosa deveria atingir, também, a formação de partidos políticos? Sim, sem dúvida. É fácil demais criar um partido no Brasil. Como resultado disso, temos várias agremiações políticas sem nenhuma significação, que simplesmente servem de abrigo para malandros. Não é por acaso que o eleitor brasileiro considera nosso sistema partidário irrelevante - ele raramente vota inspirado no partido em si; vota em pessoas, vota por simpatias pessoais. Quer dizer: não são votos de convicção política. Dá para compreender: votos de convicção política só são possíveis quando se consolida um sistema partidário. É disso que precisamos. Não faz sentido essa proliferação escandalosa de partidos políticos. Países em que a democracia funciona de forma madura têm dois ou três partidos; No Brasil, nós temos mais de 20. Essa particularidade de o eleitor brasileiro não votar com convicção política explicaria por que o maior partido do País, o PMDB, se tornou uma agremiação cuja característica apontada com mais frequência ultimamente vem sendo sua falta de norte ideológico - algo que o levaria a uma existência baseada apenas no interesse pela conquista de cargos, como disse um de seus membros históricos, o senador Jarbas Vasconcelos? O PMDB é um partido de mera agregação de candidaturas, sem nenhuma definição própria. Ele é o veículo da política de clientela. O senador Jarbas Vasconcelos está coberto de razão em suas afirmações sobre o PMDB. Mas eu gostaria de frisar ainda que a nossa vida partidária não está sedimentada. A legislação deveria ser muito mais rígida em relação ao surgimento de novos partidos e também quanto à manutenção dos já existentes. Com essa disciplina, eliminaríamos uma enormidade de partidos falsos, que são pretexto para a corrupção. Claro que, quando eu digo que o eleitor não vota por suas convicções políticos, estou falando de um modo genérico. Isso vale, sobretudo, para os cargos legislativos; para os cargos executivos, o eleitor já atua com mais seletividade. Certamente, no caso da eleição para presidente da República, o eleitor dá mais atenção a aspectos político-programáticos. Como o senhor analisa o cenário para essa disputa em 2010? Eu creio que a candidatura da situação já esteja realmente definida, com a ministra Dilma Rousseff, e acredito que pelo PSDB concorrerá o governador José Serra. Não há, no horizonte, a possibilidade de uma "terceira via"? Não digo que seja impossível, mas é improvável. O governador de Minas, Aécio Neves, ficará na disputa para a indicação até o momento em que se cristalizar a candidatura Serra. Nessa hora, ele não fará uma ruptura: apoiará o candidato do seu partido. Aécio tem um temperamento conciliador e é ainda relativamente jovem, saberá esperar sua vez. O que representou, na sua opinião, a eleição de Fernando Collor de Mello para chefiar a Comissão de Infraestrutura do Senado - o cargo mais importante que tem desde 1992, quando, acusado de corrupção, teve cassado seu mandato de presidente da República -, derrotando a petista Ideli Salvatti? Essas são jogadas do poder interno. A eleição de Collor de Mello para essa comissão do Senado é um exemplo acabado do intercâmbio de favores entre os partidos. Foi isso que o colocou lá - exclusivamente. Jogo: Collor venceu Ideli Salvatto no Senado: intercâmbio de favores Se o País depende, em princípio, do Legislativo para que a legislação mude de modo a dificultar que corruptos se elejam, que agremiações falsas surjam apenas para abrigar os oportunistas, etc., como imaginar que essas mudanças possam ser incrementadas se é justamente no Legislativo que políticos com tal perfil mais se infiltram? Obviamente, a legislação depende do Legislativo. Mas a influência do Executivo nesses momentos é extremamente importante. Na medida em que exista um presidente sério, honesto, competente - o que nem sempre ocorre -, esse chefe do Executivo terá um poder muito grande de influenciar o Parlamento. Ou seja, a partir de um presidente ilustrado, com respaldo público, pode-se chegar a uma reforma política representativa. Com mais de 80% de aprovação, o presidente Lula não estaria em condições plenas de promover tal reforma? Um coisa é a representatividade, o espaço de que ele dispõe, e outra, sua personalidade. Considero o presidente Lula um homem muito inteligente, que, com essa inteligência, conseguiu suprir as deficiências de sua formação educacional, que é precária, como sabemos. No entanto, ele não tem os traços de um líder redentor - é um homem que tem uma personalidade de acomodação. A partir daí, não se pode esperar dele uma grande renovação a respeito do Legislativo ou dos demais poderes da República. E em relação ao Parlamento? De fato, não se pode esperar do Legislativo disposição para essas mudanças? Se forem eleitos para o Congresso políticos sérios e de grande poder mobilizador, eles poderão propor alterações fundamentais na política nacional. Portanto, eu não subestimo a capacidade de autorreforma do Legislativo. Agora, na prática histórica, é mais fácil que essas propostas de mudança partam do Executivo. Fala-se com frequência que existe, no atual governo, uma indesejável mistura entre Estado, partidos e sindicatos. Tal mistura teria sido responsável pelo escândalo do mensalão e estaria na base de disputas internas - isto é, entre o partido do governo e outros, da base aliada - pela gestão, por exemplo, dos fundos de pensão de funcionários de estatais. Como o senhor analisa a questão? Esta é uma consequência do que temos hoje no Brasil: uma cultura política insuficientemente madura e um sistema partidário mal regulado. Se tivermos uma legislação partidária adequada, a cultura política vai naturalmente alcançá-la. Diferentemente da economia, cuja estabilidade tem sido considerada o principal fator para que o País sofra menos do que outras nações as consequências da crise internacional, a política brasileira vem sendo abalada nos últimos tempos por constantes choques entre poderes. Por que Executivo, Legislativo e Judiciário estão se invadindo mutuamente? Eu diria o seguinte: de um modo geral, o poder mais sério e responsável , o que melhor funciona no Brasil, é o Judiciário. Exatamente porque tem uma consciência do que convém ao País, ele tende a estender sua influência para as áreas do Executivo e do Legislativo, visando a disciplinar e conter abusos. Quando o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, rebate posturas do Executivo e do Legislativo ou cobra do Ministério Público - que não faz parte de nenhum dos três poderes (possui autonomia em relação à estrutura do Estado) - a investigação do repasse de verbas a entidades que promovem invasões no campo, ele está extrapolando suas funções? Não. Ele está simplesmente reclamando a generalização de condutas compatíveis com o Estado de Direito. Num momento como o atual, de reacomodação de forças econômicas e políticas - especialmente em função dos impactos da crise internacional -, qual o papel reservado ao Brasil? Por sua população, por seu desenvolvimento econômico e cultural, etc., o Brasil é um país que já atingiu um nível de densidade internacional muito apreciável. Agora, esse peso potencial pode ser reduzido ou alargado de acordo com o exercício da liderança feita pelo presidente da República, com o respaldo do Parlamento e da opinião pública. O Brasil não pode se apresentar no cenário internacional isoladamente, pois, se assim o fizer, gerará, imediatamente, resistências latino-americanas. Ele precisa organizar uma aliança estratégica com a Argentina. Disso dependerá a influência de ambas as nações a ser exercidano cenário internacional.

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