Todos vigiam todos na obra-prima da paranoia de Thomas Pynchon

'O Último Grito', recém-lançado no Brasil, trata da Nova York no início da internet e durante o 11 de setembro

PUBLICIDADE

Por Ronaldo Bressane
Atualização:
Nova York é cenário e quase um personagem do romance de Pynchon Foto: Lucas Jackson/Reuters

Para William S. Burroughs, se “o psicótico é alguém que tem certeza do que está rolando”, então o paranoico é “alguém que tem alguma ideia sobre o que está rolando”. Afinal, como disse antes Freud, “o paranoico nunca está completamente equivocado”. Em seu mais recente show na Netflix, Louis C.K. conta que está ouvindo rádio com sua filha quando aparece uma reportagem sobre os “nine-eleven denyers”, os paranoicos negacionistas do 11 de setembro. No entanto sua filha entende que é uma reportagem sobre os “nine eleven-denyers”, os Nove Que Negam o Número Onze. Louis C.K., Burroughs, Freud: você não sabe o que está rolando? Então talvez seja melhor mergulhar no universo paranoico de Thomas Pynchon – e aí sim você vai ter certeza de que “algo está rolando, mas você não sabe o que é” (esta é do Dylan, “do you, Mr. Jones?”).

Conspiração global, fantasias apocalípticas, contadores falsários, células terroristas, hackers, programadores, especialistas em balística, agências de inteligência burras, sombras misteriosas nos edifícios, um grito que atravessa o céu de Nova York: o 11 de setembro faz todo tipo de aparição no novo romance de Pynchon, O Último Grito (Bleeding Edge, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 579 págs). O próprio Pynchon apresenta seu livro como “um romance histórico sobre Nova York no início da internet”. Mas é também um livro sobre o nascimento da Era do Terror. Afinal, ambos são a mesma coisa. Coincidência? Como sabe todo leitor de Pynchon, não existem coincidências.

Foto rara do recluso escritor Thomas Pynchon 

PUBLICIDADE

O que isso quer dizer? Está entre as primeiras perguntas que um leitor se faz ao abrir um livro de Pynchon. Seus temas, bem como sua irônica, calorosa e divertida narração na terceira pessoa – usando e abusando magistralmente do discurso indireto livre, o mais complexo dos modos de narrar, bem manejado por Henry James –, são familiares: alterações mentais, promiscuidade sexual, cultura pop transcrita de modo lírico, explodindo em imagens, comparações e metáforas às vezes hilárias, às vezes obscuras. Além, é claro, de muita paranoia, a perda (ou a falta) de Deus, a ambição corporativa, o imperialismo cultural, o choque entre civilizações, o naufrágio dos sonhos da esquerda e o outro lado do iceberg exposto alegremente pela direita, mudanças bruscas de gênero, uma obsessiva busca de algo que se pareça vagamente com uma explicação para toda essa confusão por que passamos – o que inclui perguntas tipo “será que todo esse meu tesão irracional tem algo a ver com as novas armas criadas secretamente pelos militares?”

Italo Calvino sugeria, em suas obrigatórias Seis Propostas Para o Próximo Milênio (este milênio – o escritor italiano as escreveu em 1985, ano-fronteira para os nativos digitais), que uma das ambições da literatura fosse a Multiplicidade. Ele usa duas imagens para o conceito: o diamante, com suas inúmeras arestas e faces, e a rede. Uma rede de redes: a ideia de que o romance se expandisse para todos os lados, sem convergir em nenhum centro. Entre as obras que Calvino indicava para demonstrar seu conceito estão o conto O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”, de Jorge Luis Borges, e o hiper-romance A Vida Modo de Usar, de Georges Perec. Seu conceito explora outra conhecida tese da teoria literária, a “carnavalização” do crítico russo Mikhail Bakhtin, em que a polifonia (múltiplas vozes, personagens e perspectivas da realidade expostas simultaneamente) explica a estrutura dos grandes romances de Dostoievski. A carnavalização também se aplica ao Roberto Bolaño de Detetives Selvagens, ao Osman Lins de Avalovara, ao David Foster Wallace de Graça Infinita – e tem como maior nome vivo nosso Pynchon.

“O jazz não é um quê, o jazz é um como”, dizia Louis Armstrong, e do mesmo modo o universo pynchoniano de algum modo é sempre o mesmo universo em que todos vigiam todos para tentar entender o sentido por trás de tudo, e portanto a pergunta “de que trata este romance?” soa inútil. No caso deste livro, o universo abarca os meses que antecedem o 11 de setembro, quando a bacanérrima Maxine, uma contadora tão picareta quanto adorável, ao ser contratada para investigar uma startup, chega a um esquema de financiamento de terroristas e de contrabando de sorvete russo – fora, é claro, à conclusão de que a realidade não passa de uma medíocre fraude fiscal (e quem acompanha o reality show da Lava Jato já desconfiava disso). O que Pynchon nos traz de novidade aqui são as possibilidades de salvação. Além do humor de sua linguagem ter perdido histeria em detrimento de um lirismo terno, a empatia que Pynchon demonstra por Maxine e sua família disfuncional evoca um guarda-chuva possível em tempos de hiperconspirações: a solidariedade incondicional e o afeto irredutível. Maxine transmite tanta segurança a seus filhos que eles conseguem ir à escola sozinhos sem olhar pra trás ou por cima dos ombros. Não é pouco – e pode ser tudo.

*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor, entre outros, de 'Metafísica Prática' (Poesia, Ed. Oito e Meio) e 'Escalpo' (Romance, Ed. Reformatório)

Capa do livro 'O Último Grito', de Thomas Pynchon 

O Último Grito Autor: Thomas PynchonTradução: Paulo Henriques BrittoEditora: Companhia das Letras 584 páginas R$ 79,90

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.