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Tolerância na torcida

Na atual crise de imigração na Europa, o futebol mostra sua vocação para o multiculturalismo e ajuda a encolher o nacionalismo

Por Christian Schwartz
Atualização:

Nos relatos sobre aquele que já está sendo considerado o mais crítico fluxo de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra, a reincidência de uma cena em particular - primeiro numa estação de trem da Hungria onde um grupo de sírios eram impedidos de embarcar, depois numa estação de trem da Alemanha onde outro grupo de migrantes conseguiu chegar - chamava a atenção: as duas pequenas multidões de desesperados esperançosos entoavam em coro: “Alemanha! Alemanha!” Se o cenário fosse, em vez de um campo de batalha por sobrevivência e futuro, uma arena futebolística, com toda a carga simbólica das disputas de vida ou morte a que não raro se entregam as torcidas de clubes e seleções, aqueles refugiados talvez se sentissem mais em casa do que jamais se sentirão na vida real do país que, com alguma sorte, lhes dará asilo.

'Bem-vindos'. Fãs do Werder Bremen, da Alemanha, saúdam os refugiados em jogo da Bundesliga Foto: KAI PFAFFENBACH|REUTERS

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E, de fato, ao lado das imagens trágicas e dos números alarmantes (350 mil pessoas lançando-se à mortífera travessia do Mediterrâneo, 800 mil pedidos de asilo só na Alemanha, apenas em 2015), algumas das primeiras mãos estendidas aos refugiados foram as de representantes de clubes e torcedores alemães. Os torcedores, em ação coordenada nos estádios, onde exibiam mensagens de boas-vindas. Os clubes, com medidas mais concretas de integração: o Borussia Dortmund, por exemplo, reservou parte dos lugares de seu estádio para que 220 refugiados assistissem a uma partida, enquanto o Bayern de Munique colocou crianças refugiadas para entrar em campo com os jogadores - mesmo Bayern que anunciou que vai oferecer comida, aulas de alemão e abrigo nos alojamentos de suas categorias de base, além de uma doação de ¤ 1 milhão. 

Felizmente, o que tem prevalecido nesses episódios é a vocação do futebol para o multiculturalismo. Apesar de francamente globalizado, ou precisamente em reação a isso, o mundo da bola acolhe e estimula pertencimentos locais, comunitários. E, ao relegar o nacionalismo - discurso primordial na discriminação a imigrantes - a segundo plano, até pela presença maciça e fundamental de jogadores estrangeiros nos elencos, os clubes europeus e suas torcidas se convertem em potenciais ilhas de tolerância no debate público sobre imigração na Europa. O que, claro, não deve implicar que se feche os olhos ao paradoxo - ou, novamente, ao caráter reacionário - de manifestações de racismo e perversões neonazistas abrigadas em algumas dessas mesmas torcidas. 

Mas o fato a destacar aqui é, sem dúvida, a adesão em coro daqueles refugiados à nação da qual desejam fazer parte, como que se somando ao uníssono apoio das arquibancadas à seleção atual campeã do mundo. E haverá simbolismo mais poderoso daquilo que se deseja para os filhos? (o melhor, sempre?) Ao mesmo tempo que campo fértil para a mobilidade social, - seja internamente, em qualquer país com ligas profissionais estabelecidas, seja na seara da exportação de jogadores, embora apenas uma minoria conquiste, de fato, uma vida melhor - também em termos simbólicos o futebol é pródigo quando se trata de reinventar-se, tanto para quem joga quanto para quem torce. 

Na Copa do ano passado, por exemplo, dentre os convocados para as 32 seleções, cerca de 100 jogadores (um a cada dez, aproximadamente) defenderam nos estádios brasileiros uma camisa que não era a de seu país de nascimento. Não mais do que cinco times tinham no elenco apenas jogadores nascidos em seu território nacional - o Brasil entre eles; todos os outros contavam com naturalizados, ou seja, acolhiam ali novos cidadãos pelo que eram, por seus talentos, e não por direito nato (ou quem sabe divino). 

Ora, o mundo moderno é, por definição, esse mundo da liberdade individual. Não se casa mais com alguém escolhido de antemão pela família, nem se é obrigado a seguir a profissão do pai. Não seria, então, natural que se escolhesse também a que país se quer pertencer?

Antes que a comparação pareça leviana, admita-se que nem sempre a questão é de escolha. E a maioria dos sírios e afegãos hoje tentando desesperadamente chegar a um porto seguro na Europa talvez jamais tivesse cogitado a nacionalidade por adesão. O que se costuma esquecer com facilidade é que simplesmente não existe algo como uma primeira nacionalidade “por natureza”.

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Na célebre teoria das “comunidades imaginadas”, em que trata em particular do mundo pós-colonial, o historiador britânico Benedict Anderson defendeu que as nações se consolidam a partir da emergência de um fenômeno próprio das modernas sociedades capitalistas: a leitura simultânea, numa língua comum, de jornais e romances por um número crescente de concidadãos. O gesto sincronizado da leitura de jornal - e veja-se a semelhança com o torcer por um time ou por uma seleção - os lançaria numa “realidade” imaginada que é a refração de acontecimentos de interesse comum no raio de alcance da língua de determinada comunidade.

A teoria de Anderson, originalmente pensada como explicação da emancipação simbólica de territórios coloniais no século 19, encontra eco no fenômeno das narrativas pós-coloniais e imigrantes surgidas no final do século passado: o pós-colonialismo, movimento importante a partir dos anos 1980 na literatura e mesmo no cinema, tipicamente encena a história do imigrante a vagar por subúrbios de metrópoles que ama e odeia, como Londres, Paris ou Berlim, as quais por sua vez o aceitam, mas ao mesmo tempo hostilizam, negando-lhe visibilidade e identidade. Ele não é mais paquistanês ou indiano ou norte-africano ou turco, e tampouco recebe o tratamento que um “autêntico” inglês, francês ou alemão mereceria. Mas pode, sim, ser personagem de romances e filmes, ou se projetar como protagonista das narrativas de clubes e seleções de futebol.

Na arena futebolística, a Inglaterra, por exemplo, na mesma década de 1980, assistia à novidade de jogadores de ascendência caribenha começando a chegar com mais frequência ao selecionado nacional. A França, por sua vez, encontrou o auge dessa narrativa na seleção campeã mundial em casa, em 1998. Também a Holanda abraçou em campo sua herança como colonizadora. E há, por fim, o caso notável da Alemanha.

Ainda às vésperas da Copa de 2014, a revista especializada The Blizzard - biscoito fino para apreciadores de ensaios e grandes reportagens sobre o mundo da bola - trazia um texto de Uli Hesse tratando do quanto tem mudado, em anos recentes, o futebol alemão. Hesse ouviu inúmeros profissionais e especialistas, entre os quais o ex-jogador Bastürk. Nascido na Alemanha e destaque em clubes do país, o meio-campista optou por defender a seleção da Turquia, com a qual chegou a uma semifinal de Copa do Mundo, em 2002. “Se a gente olha para 10 ou 15 anos atrás”, observa Bastürk, “era quase impensável que jogadores com background estrangeiro jogassem pela Alemanha. Agora tudo mudou, virou multicultural.”

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Eis aí uma versão alemã recente da narrativa pós-colonial (ou simplesmente imigrante, já que não existe, nesse caso, uma relação direta colonizador-colonizado, como na Inglaterra ou na França, mesmo na Holanda): nas palavras de Hesse, a narrativa de um “novo futebol alemão - emocionante, divertido, moderno”. E “multicultural”. 

O que Bastürk vem reforçar: “Muitos da terceira geração (netos dos imigrantes originais) se sentem mais alemães do que turcos. Todos os meus sobrinhos e sobrinhas falam alemão muito melhor do que falam turco”. Ao que se poderia prontamente acrescentar que, muito provavelmente, leem e escrevem apenas em alemão, o que não deixa dúvida quanto a qual comunidade imaginada pertencem pela língua “literária”. “Que mais e mais jogadores com esse background de migração agora escolham representar a Alemanha”, completa Bastürk, “é normal, na verdade. Tinha que acontecer.”

A questão de fundo é a preponderância, ou não, da etnia como fator de nacionalidade no mundo moderno. E outro historiador britânico, Eric Hobsbawm, assim como Benedict Anderson, encara esse elemento como “protonacional”. Vale reforçar, não se trata aqui de negar o frequente cunho racista de manifestações em defesa da exclusividade no pertencimento a nações. O negro Mario Balotelli, um italiano de pleno direito, segue pagando um alto preço por envergar a camisa da seleção de seu país. E, na observação do professor gaúcho Luís Augusto Fischer, “talvez a Itália (como seleção de futebol) seja o último reduto da perversa fantasia da pureza racial”.

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Mas vale constatar que, dado o estabelecimento duradouro de instituições políticas (o Estado, principalmente), econômicas (no mercado, trata-se mais de classes que de “raças”) e simbólicas (o letramento e as mídias), não sobra muito espaço real para a exclusão por critérios meramente étnicos. Meramente, claro, pois as expulsões de imigrantes ilegais, sendo antes políticas, ainda assim adotam o racismo como critério de seleção. Porém, esse não é critério a priori para a formação da nação, uma questão sobretudo cultural. “Nacionalidades não são mais primordiais ou monopolistas”, resume Nicola Miller, outro estudioso dos nacionalismos contemporâneos.

A Europa que hoje tenta acolher algumas centenas de milhares de refugiados, com a mobilização de seus clubes e torcedores nessa missão, é terreno fértil para a construção permanente de comunidades imaginadas que são também locais. No dia a dia dessas comunidades, o futebol se expressa mais em termos de “comunitarismo” que de “nacionalismo”, conforme observa o historiador Hilário Franco Júnior: “O nacionalismo futebolístico tem recuado à medida que cresce a percepção de que a emoção e a mobilização cotidianas estão nas comunidades mais do que no denominador comum a elas, que é a nação”. 

Que soma de culturas constituirá uma cultura nacional no século 21? É essa pergunta, tão contemporânea, que permite às pequenas multidões ora despejadas em estações de trem alemãs sonhar, enfim, com uma nova vida. Enquanto aprendem a torcer por Borussia ou Bayern, pois o coro para os jogos da seleção, ao que parece, já veio ensaiado: “Alemanha! Alemanha!”

CHRISTIAN SCHWARTZ É DOUTOR EM HISTÓRIA SOCIAL (USP/CAMBRIDGE), JORNALISTA E TRADUTOR