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Tortura, nem diet serve

Presidente eleito dos EUA deveria ter puxado a orelha do deputado que defendeu o ?programa alternativo? de interrogatório da CIA

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Depois da Coca Zero e do Doce Menor, a Tortura Light. Foi mais ou menos isso que os Vigilantes do Peso na Consciência andaram propondo ao governo Barack Obama, antes da ducha gelada que o Senado americano jogou sobre os defensores da truculência meia-bomba, no meio da semana. Mais preocupado em desvencilhar-se do governador Rod O teu Cabelo não Nega Blagojevich, o presidente eleito não deu resposta, infelizmente, ao embaraçoso conselho do deputado texano Silvestre Reyes a sua equipe de transição, na terça-feira. Até por ser democrata e presidente do Comitê de Inteligência da Câmara, Reyes merecia um pronto e exemplar puxão de orelhas. Não se pode dar mole com os vigilantes do peso na consciência. Para início de conversa (ou conversão), o deputado recomendou a permanência, no novo governo, dos atuais chefes da Inteligência Nacional (Mike McConnell) e da CIA (Michael Hayden). Por um período mínimo de seis meses. Reyes considera a "continuidade" fundamental à segurança do país. Por que assegurar continuidade à mais calamitosa política de defesa e segurança que os EUA já tiveram? Porque Reyes, por ingenuidade, má-fé ou ignorância em política externa (disse, há duas semanas, que os xiitas, e não os sunitas, mandam na Al-Qaeda), acredita na eficácia e lisura do que, eufemisticamente, chamou de "o controvertido programa alternativo de interrogatório da CIA". Ao menos acreditava até terça-feira passada, quando disse, numa entrevista à TV: "Não queremos ficar conhecidos por torturar pessoas, mas ao mesmo tempo não queremos limitar nossa habilidade para extrair informações vitais e críticas à segurança nacional. Daí a necessidade de que a nova administração decida que parâmetros seguir e que limites aceitar". Não cabe ao governo Obama, como não cabia à administração Bush, decidir sobre os parâmetros e limites de interrogatórios a prisioneiros de guerra. Está tudo previsto nas Convenções de Genebra e na legislação sobre crimes de guerra, aprovada em 1996 pelo Congresso americano. Os chicaneiros de Bush & Cheney as desrespeitaram cínica e metodicamente, sob a alegação de que a voga terrorista impusera um novo paradigma de inteligência e justiça. Mas já foram oficialmente desautorizados. E enquadrados. Não por alguma ONG, mas pelo Senado americano. O programa "alternativo" de interrogatório da CIA simplesmente adotou a tortura como sua principal arma de persuasão e "essas ações atrapalharam nossa capacidade de coletar informações corretas de inteligência que poderiam ter salvado vidas, reforçaram nossos inimigos e comprometeram nossa autoridade moral", concluiu um relatório da Comissão de Forças Armadas do Senado, redigido por democratas e republicanos, e tornado público na quinta-feira. Além de timbrar o que há muito se sabia, a comissão reconheceu que a ordem para fazer vista grossa às Convenções de Genebra partiu, mesmo, de cima, não de escalões inferiores da cadeia de comando, responsabilizando o ex-secretário da Defesa do governo Bush, Donald Rumsfeld, e seus assessores diretos pelos abusos cometidos contra detentos em Guantánamo, no Iraque e outros países. A liberação do uso de técnicas coercitivas proibidas por lei brotou de um memorando assinado por Bush em 7 de fevereiro de 2002, no qual se alegava que os padrões de tratamento humano lavrados em Genebra não se aplicavam a integrantes da Al-Qaeda e do Taleban capturados pelas forças armadas dos EUA. Por trás do casuísmo, os conselheiros jurídicos do presidente (Alberto Gonzales, que, três anos depois, substituiria o não menos abominável John Ashcroft na pasta da Justiça) e do vice-presidente (David Addington). Ainda com base nas Convenções de Genebra, Bush, Rumsfeld & Cia. poderiam ser enquadrados como "criminosos de guerra", mas, que eu saiba, todos se livraram de punições retroativas por obra de um decreto (o Military Commissions Act), aprovado às pressas antes de os democratas tornarem-se majoritários no Congresso em 2006. É de se supor que o conselho e os argumentos de Reyes tenham entrado por um ouvido de Obama e saído pelo outro. De todo modo, Mike McConnell e Michael Hayden continuam na lista de prováveis sucessores de si mesmos. E John McLaughlin e John Brennan, auxiliares de Charles Tenet, o diretor da CIA que bancou a existência de laboratórios móveis de armas biológicas no Iraque em 2003, ainda integram a equipe de transição de Obama. Sim, é inacreditável. Obama não foi contra a confirmação de Hayden como diretor da CIA, em maio de 2006, por considerá-lo o "arquiteto e principal defensor dos programas de espionagem ilegal de Bush"? E o próprio Reyes não xingou McConnell de mentiroso em agosto do ano passado, ao ouvi-lo gabar-se de que as mudanças então pleiteadas (e afinal aprovadas) na lei que desde 1978 rege a bisbilhotice e o grampeamento de estrangeiros haviam impedido um atentado terrorista na Alemanha? O bem informado blogueiro político Marc Ambinder acalmou um pouco o eleitorado democrata ao anunciar, na quarta-feira, que Obama ainda pondera suas escolhas preliminares para a área da inteligência. Seu temor à pecha de "continuísta", pode levá-lo a desfazer-se de vários servidores do atual governo. Há, portanto, esperanças de que McConnell, Hayden e Brennan estejam pela bola sete, e acabem preteridos ou pelo almirante (reformado) Dennis Blair ou pelo general (também reformado) James Jones ou pelo ex-parlamentar Tim Roemer. Ou por nenhum dos três. O comando da CIA é o que oferece mais problemas de escalação. Já se falou em Jack Devine (ex-chefe de operações da agência), Jami Miscik (com vasta experiência em análises de dados) e John Gannon (clintonista, mas com passagem na segurança interna na administração Bush). Que vençam aqueles que Obama, o Congresso e a sociedade civil tenham condições de vigiar estreitamente. E punir no ato.

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