Tradutor de 'Júlio César' comenta desafio de verter Shakespeare

José Francisco Botelho fala sobre o processo de tradução da peça recém-lançada no Brasil

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Por Estado da Arte
Atualização:

José Francisco Botelho está habituado aos grandes desafios da tradução. Seu Cantos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer, assim como seu Romeu e Julieta, de Shakespeare, receberam o segundo lugar na categoria de tradução do Prêmio Jabuti. Escritor e jornalista – tem dois livros publicados e é colunista do Estado da Arte –, Botelho concedeu esta entrevista sobre sua mais nova tradução, o Júlio César de Shakespeare, lançado esta semana pela Penguin/Companhia das Letras. 

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John Mackay e Sam Troughton durante a peça 'Júlio César' montada pela Royal Shakespeare Company em Nova York Foto: Richard Termine/The New York Times

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Quem é o Júlio César de Shakespeare? Um grande estadista, um tirano potencial ou um fanfarrão?  Eis uma pergunta a que Shakespeare, de forma quase mágica, nos impede de responder definitivamente: a figura de Júlio César é cercada de irresistível ambiguidade, e esse é um fator que confere à peça caráter inesgotável de urgência e atualidade. Desde a primeira cena, as simpatias do público são lançadas de um lado para outro entre as facções que disputam o destino de Roma, e a habilidade do dramaturgo não permite que nos detenhamos em nenhuma posição simples. Observe, por exemplo, o discurso de César diante do Senado – a célebre fala em que ele se compara à estrela boreal. Considerada separadamente, a passagem parece transmitir uma autoconsciência quase sobre-humana e não deixa de despertar admiração e espanto. Vista no conjunto da peça, contudo, ela assume um traço muito mais problemático: pois o convincente autoelogio de César é pronunciado momentos antes das 33 punhaladas que o derrubam. São de Marco Bruto as reflexões mais impressionantes da peça – seus conflitos entre o dever cívico para com a república romana e o sentimento filial para com César, a decisão angustiada, a culpa conflituosa. 

Quem é o verdadeiro protagonista da peça?  Temos aí mais uma dúvida que a peça propositalmente alimenta e não resolve. Relatos contemporâneos dão conta de que, já nas primeiras encenações da peça, o público via-se estonteado por uma violenta oscilação entre os dois personagens: ao ouvirem o discurso de Bruto, os espectadores entusiasmavam-se e davam-lhe plena razão; ao ouvirem a fala de Marco Antônio, mudavam radicalmente de ideia e passavam a condenar os assassinos de César. Posteriormente, cada época teve seu protagonista favorito. Do século 17 até meados do 19, Bruto foi o escolhido. Suas virtudes filosóficas e morais eram acentuadas, o que levava a alterações do texto em seu favor. Já no final do século 19, algumas encenações tomaram Marco Antônio como o personagem central. É interessante notar que, no cinema, a figura de Marco Antônio chama mais atenção – talvez devido ao extraordinário potencial cinematográfico da cena em que ele discursa no fórum e incendeia os ânimos do povo contra os conspiradores. Essa transmigração de nosso afeto dramático se torna especialmente comovedora na cena final, quando Marco Antônio, vitorioso, faz um elogio póstumo diante do cadáver de Bruto. 

‘Júlio César’ é singular no repertório shakespeariano pelo estilo econômico. Você, porém, adotou uma estratégia de tradução que se vale de diferentes metros e ritmos para as passagens em verso, sem perder, nos momentos incisivos, a força da frase curta. Como conferir unidade a essa solução de tradução de modo a ser fiel ao autor?  Minha estratégia “multimétrica” tem o objetivo de conferir ao texto uma espécie de veemente naturalidade em nossa língua e em nosso tempo. Tratei de recriar, em português brasileiro, esse latim imaginário, refratado pelo inglês elisabetano, optando por variar o tamanho dos versos conforme os haustos, os alongamentos, as lacunas e as exacerbações do fôlego retórico, evitando que o texto, por enrijecimento, perdesse a urgência e a verossimilhança. 

O leitor percebe desde o início o peso das palavras, da retórica. Pesa para o tradutor buscar, por meio do estilo, convencer o leitor, assim como os personagens logram convencer uns aos outros? Sem dúvida: as escolhas vocabulares e estilísticas têm o papel de criar efeito de verossimilhança, de modo que o público acredite que essas são palavras reais, com um significado imediato, ainda que proferidas num universo ficcional. Uma tradução literária é, também, um processo de world-building: as palavras devem ter uma relação orgânica umas com as outras, funcionando segundo uma lógica secreta, porém todo-poderosa, que produza aquilo que Coleridge chamou de “a suspensão momentânea da descrença”. No caso de Júlio César, o desafio foi criar um universo linguístico que permitisse aos leitores suspender a descrença e aceitar que à sua frente movem-se e falam os homens que escreveram a Guerra da Gália e as Catilinárias – mas, ao mesmo tempo, convencê-los de que esse universo distante é, de alguma forma, próximo, familiar e crucial. 

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As passagens mais solenes do texto se destacam na tradução, mas você se sai muito bem ainda nos momentos jocosos, especialmente com os personagens populares. O seu Shakespeare é mais plebeu do que o elitizado mito que chegou até nós? Interesso-me muito pela variação de registros em um mesmo texto: é uma estratégia árdua, mas eficaz na criação de efeitos estéticos. Em Romeu e Julieta, a comédia às vezes alucinada dos primeiros atos acentua, por contraste, a dilacerante tragédia dos atos finais. Em Júlio César, esses toques de escárnio, distribuídos de forma mais difusa, entremeando a solenidade dos discursos públicos e a gravidade feroz das vindicações, transmite a impressão de estarmos diante de seres reais, em um mundo que, como o nosso, conhece a hilaridade e o tremor, o sórdido e o sublime, o ridículo e o heroico. Por todos esses motivos, faço questão de manter a graça em todas as passagens que originalmente despertavam o riso. Esta é uma das partes mais difíceis do ofício de tradutor, já que o humor é geralmente a primeira coisa que se perde na passagem de uma língua à outra – especialmente em Shakespeare, cujos chistes são muitas vezes baseados em trocadilhos. Mas se trata de uma dificuldade divertidíssima: confesso, sim, que me identifico profundamente com os zombadores shakespearianos, como Mercúcio, Falstaff e os plebeus de Roma, cuja relação lúdica e luxuriosa com a linguagem abre infinitas possibilidades de criação. Em vez da tradução literal, recrio os gracejos, zombarias e descaramentos, buscando na fala popular elementos que sirvam de ingrediente a um riso novo, fresco, envolvente e revelador. 

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