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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Tremendo panamá

O escândalo de corrupção tirou do baú uma acepção desairosa do país do canal, caso único – até aqui – de nação que virou sinônimo de roubalheira

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Atualização:
  Foto: CARLOS JASSO | REUTERS

Por não ser rota preferencial de cataclismos naturais, tráfico de drogas e luta armada como alguns de seus vizinhos, o Panamá costuma só fazer figuração nas manchetes protagonizadas por terremotos, furacões e guerrilhas do Caribe e arredores. Foi preciso que a Mossack Fonseca, escritório de investimentos em paraísos fiscais sediado na capital panamenha, tivesse suas falcatruas financeiras publicamente denunciadas para que o país voltasse a ter destaque no noticiário internacional.

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Na última segunda-feira, quando da primeira desova dos 2.6 terabytes dos Panama Papers, expondo práticas questionáveis e malfeitos contábeis de políticos, bilionários, narcotraficantes e celebridades do show business e do esporte em mais de 200 países, o istmo que liga as Américas do Norte e do Sul atraiu as atenções do mundo inteiro como há muito não lograva.

De lambugem, o #PanamaPapers ajudou a tirar do baú lexical a terceira acepção que aqui se deu ao substantivo “panamá”: sinônimo de gestão fraudulenta de empresa pública ou privada cujos dirigentes visam enriquecer lesando os demais acionistas. É uma metonímia sem paralelos no planisfério. Que outro país teve seu nome substantivamente ligado a alguma coisa, desairosa ou não? “Negócio da China” e “macedônia de frutas” não se qualificam. Muito menos “presente de grego” e “danish” (que significa dinamarquês, não Dinamarca, e também aquele pãozinho doce, aliás de origem austríaca, aparentado ao “pain aux raisins” francês). “Paraguaio” virou adjetivo, designando produtos falsificados.

A identificação do Panamá com roubalheira surgiu, dizem, no final do século 19, por força das fraudes da companhia encarregada da construção do célebre canal unindo o Atlântico ao Pacífico. As obras começaram em 1881 e só terminaram em 1914. Imprudente gozar os panamenhos por seu país conotar corrupção, pois o nosso, cujo nome, aliás, também se originou de uma árvore nativa, pode vir a concorrer com o Panamá num futuro não muito distante, já que empreiteiras vorazes e sem escrúpulos e governantes perdulários aqui abundam.

O mesmo francês, Ferdinand de Lesseps, que criara o Canal de Suez bolou o do Panamá, com graves prejuízos, inclusive uma pena de cinco anos de cadeia, sem direito a delação premiada. Acesso a dois oceanos imposto pelos interesses comerciais e estratégicos dos EUA, o canal virou a Torre Eiffel, o Corcovado do Panamá, uma atração turística, talvez a segunda coisa que melhor identifica o país no exterior, perdendo apenas para o homônimo chapéu feito à base de fibras trançadas de bombonaça, que nestas bandas voltou a ser moda na década passada. Ocorre que o chapéu-panamá (verifique na aba interna) é de origem equatoriana.

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Panamenhos da gema conheço pouquíssimos. De fama e obras, o cantor e ator Rubén Blades, o diretor da Broadway José Quintero, o baterista Billy Cobham, o escritor Carlos Fuentes (filho de diplomata, nasceu – por acaso, mas nasceu – na Cidade do Panamá), o senador John McCain (filho de almirante, veio ao mundo na Base Naval de Coco Solo). Nenhum deles ficou por lá. O único panamenho com quem fiz amizade foi o cônsul Homero Icaza Sánchez, que optou por permanecer para sempre no Rio, onde sua inteligência, cultura e expertise em opinião pública foram de extrema utilidade para a Rede Globo e lhe valeram o apelido de “El Brujo”.

Por sua localização estratégica, o território do Panamá foi um pitéu para os piratas dos séculos 16 e 17, como, de resto, todo o Caribe. O corsário inglês Henry Morgan saqueou e incendiou sua capital, quando ela já era o segundo entreposto urbano mais importante das colônias espanholas. Ao libertar-se do reino de Fernando 7º, em 1821, tornou-se parte da República da Gran Colombia, da qual se desvinculou em 1903, encorajada pelos americanos interessados em dar continuidade às obras do canal iniciadas pelos franceses.

No afã de criar um mare nostrum para o nascente império americano, Theodore Roosevelt, que já invadira Cuba, ocupou a Zona do Canal e pagou à Colômbia US$ 25 milhões. O processo de bananização da América Latina ganhou ali seu primeiro grande impulso. “Tomei a Zona do Canal e deixei o Congresso ficar discutindo”, vangloriou-se o presidente de sua total liberdade de ação ao sul do Rio Grande. Seu sucessor, William H. Taft, anotaria em seu diário, nove anos mais tarde: “Não está longe o dia em que três bandeiras americanas irão demarcar nosso território: uma no Polo Norte, outra no Canal do Panamá, e uma terceira no Polo Sul. Todo o hemisfério será nosso de fato, pois, graças à superioridade de nossa raça, já nos pertence moralmente”.

A Zona do Canal foi um protetorado americano até 1936. No ano anterior, o general Smedley D. Butler, comandante dos fuzileiros navais que a invadiram e policiaram, confessou em suas memórias: “...durante aquele período, passei a maior parte do tempo como capanga de luxo para as grandes empresas, Wall Street e banqueiros. Em suma, fui um extorsionário do capitalismo.”

De 1903 a 1968, o Panamá foi uma democracia constitucional dominada por uma oligarquia e militares sedentos de poder. Um de seus presidentes não conseguiu ficar mais do que dez dias no poder. Um mesmo chefe de polícia, José Antonio Remón, derrubou cinco presidentes, até tornar-se ele próprio chefe do governo em 1952. Surpreendentemente, saiu-se melhor que a encomenda: melhorou a situação dos menos favorecidos, combateu a corrupção, quitou dívidas externas; até ser assassinado em 1955, o que permitiu que a oligarquia dos Arias e Chiaris voltasse ao poder.

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Dos sucessivos generais que tocaram adiante o Panamá, Omar Torrijos, comandante da Guarda Nacional e ditador de 1968 a 1981, ao menos recuperou a posse do Canal. Beberrão e mulherengo, tornou-se amigo e personagem de Graham Greene, mas foi outro a sucumbir num atentado, igualmente atribuído à CIA. Seu sucessor, o general Manuel Noriega, em tantos panamás se meteu (lavagem de dinheiro, além de tráfico de drogas e assassinatos) que perdeu o apoio do governo Reagan, acabou sequestrado pelo Bush Pai e hoje amarga 30 anos de cadeia em Miami.

Presidido há dois anos por Juan Carlos Varela, vitorioso nas urnas sobre um herdeiro do clã Arias, o Panamá é hoje, comparativamente, quase um paraíso. Graças, porém, à dupla Jurgen Mossack-Ramon Fonseca, tão cedo não se livrará da indecorosa metonímia.