Três livros brasileiros reavaliam aspectos da literatura grega

Tradutores e intelectuais analisam temas como a astúcia na 'Odisseia', a ideia de duplo em 'Helena' e o pensamento mítico como algo inacessível hoje em dia

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Por Marcelo Tápia
Atualização:

Três lançamentos substanciais relacionados ao mundo grego antigo colaboram para revivificar, entre nós, o legado dos tempos de deuses e heróis: A Astúcia de Ninguém, de André Malta; Helena de Eurípides e Seu Duplo, de Trajano Vieira; e Mitos e Imagens Míticas, de Jaa Torrano.

Francesco Primaticcio, do século 16, retrata Helena no momento em que é raptada Foto: FRANCESCO PRIMATICCIO/BOWES MUSEUM

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A obra de Malta tem a qualidade de servir tanto a especialistas como a um público mais amplo. Seu tema, astúcia, é um dos atributos da deusa Métis, assim como o são sabedoria, prudência e habilidade. A palavra métis compõe uma das qualificações de Odisseu (ou Ulisses), herói da Odisseia, de Homero; sobre o poema, diz Malta: “A astúcia é indicada logo no primeiro verso através do termo ‘multiforme’, polútropos, adjetivo grego que, embora admita a tradução por ‘de muitos caminhos’, parece antes destacar a ideia de versatilidade, de uma multiplicidade de recursos mentais, de uma polivalência que será reafirmada inúmeras vezes na sequência por outro qualificativo, o tradicional polúmetis (‘multiastuto’)”.

Astucioso, poliengenhoso: os atributos de Odisseu associam-se a um mundo muito distante do nosso. Divaguemos sobre o que significariam, hoje, tais qualificativos: na visão de Haroldo de Campos, em seu poema Finismundo: A Última Viagem, o multiastucioso se tornaria, na megalópole, um factótum, um faz-tudo ou, talvez, que faz de tudo para obter o que almeja: um ninguém cujo “fogo prometeico” torna-se a efêmera chama de um fósforo; e a quem talvez chamássemos, depreciativamente, de “esperto”...

Bem diverso será o valor de “esperto” no universo homérico. Malta observa que “o tema da astúcia vem interligado ao da justiça: Odisseu se empenhou na salvação de seus companheiros, mas estes, ‘tolos’, pereceram por seus ‘atrevimentos’. Ao ‘esperto’ contrapõem-se os ‘insensatos’, e a insensatez é relacionada a uma transgressão, a um comportamento desmedido”; os atos desmedidos – como os dos pretendentes da esposa de Odisseu, Penélope, que usurparam o palácio do herói, em sua ausência – contrastariam, portanto, com a “justiça de Odisseu” (que, ao retornar a sua casa, matou todos os pretendentes). 

Malta realiza uma interpretação da Odisseia a partir de três temas “fundamentais para o desenvolvimento da narrativa: astúcia, justiça e encobrimento”. A relação entre astúcia e encobrimento explicita-se, segundo o autor, no jogo entre as palavras (foneticamente equivalentes) métis, astúcia, e mé tis, “encobrimento/disfarce ou ser ‘ninguém’”. Assim, “astúcia é concretamente ‘ser ninguém’”, num jogo “intraduzível”. No Canto 9, associam-se mé tis e oûtis (cujo significado também é “ninguém”), nome alternativo de Odisseu no famoso episódio em que vence o Ciclope, gigante de um olho só. Malta, que incluiu em seu livro a tradução de oito cantos da Odisseia (em versos que combinam dois segmentos setissílabos), assim traduz a fala de Odisseu quando, ardilosamente, se autodenomina Ninguém: “Ciclope, perguntas meu célebre nome, e eu direi / / Ninguém é o nome que tenho. De Ninguém me chamam sempre”. E estes versos, nos quais os conterrâneos do monstro, que atenderam a seu chamado, fazem sua última intervenção após o Ciclope ter-lhes respondido “Caros, Ninguém mata a mim por ardil e à força não”: “Mas se a astúcia de ninguém (mé tis) oprime a ti, que estás só, / doença vinda do grande Zeus não há como evitar!”. Odisseu constata deste modo a vitória do ardil: “Assim disseram, partindo. Riu meu caro coração: / meu nome enganara, a astúcia ilibada de Ninguém”. Ser e não ser, eis a fórmula da astúcia representada pelo trocadilho homérico. 

“Ser e não ser” é tema que permeia, também, o livro Helena de Eurípides e Seu Duplo, de Trajano Vieira, que reúne um artigo introdutório, a tradução de Helena e o original em grego da peça. Na tragédia – “se é possível considerá-la tragédia, devemos fazê-lo com certo cuidado”, pois é “plena de ironia e sutileza, com aspectos romanescos e cômicos que têm dificultado sua classificação”, comenta Vieira – Helena são duas: ela mesma e seu simulacro, que, concebido por Hera, teria sido sequestrado por Páris e mantido em Troia por dez anos (rapto esse que desencadeou a guerra imortalizada na Ilíada). Após a guerra, Menelau navega por sete anos a fim de voltar a sua cidade natal, em companhia da resgatada esposa Helena; ao aportar em país desconhecido, descobre que a Helena verdadeira era a outra que ali estava e lhe revelaria a história de seu duplo.

No dizer de Vieira, “Eurípides duplica a personagem, constitui um simulacro, com o intuito de sugerir que não passa de ilusão o universo em que estamos submersos (antecipação de Borges?), que é impossível distinguir o original da cópia”. A noção crítica do tradutor afina-se com concepções do poeta Haroldo de Campos acerca da criação e da transcriação (nome que Haroldo atribuía à tradução poética): numa visão sincrônica da literatura, faz sentido presentificar relações entre obras distantes no tempo, de modo a identificar antecipações ou derivações. Para o autor, “não é difícil entrever nessa construção cênica um gesto metateatral, uma reflexão sobre a própria natureza da representação no palco, que reproduz (em que medida?) algo que transcende o espaço ocupado por personagens com suas máscaras”. 

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Trajano Vieira – cuja dedicação à tradução de obras gregas se marca pelo exercício da inventidade – assim recria, em dodecassílabos, os versos 21 a 36 de Helena: “Me chamo Helena e passo a referir o que / sofri. Três deusas recorreram a Alexandre / no vale Ida, Hera, Atena e Afrodite, / querendo que ele decidisse qual das três / tinha silhueta mais perfeita que as demais. / Cípris ofereceu minha beleza a Páris / em casamento, se a amargura é bela. Vence. / Ele abandona a rês nos píncaros do Ida / e parte rumo a Esparta a fim de se casar / comigo. Ressentida por não derrotar / as outras deusas, Hera insufla o vento vão / que Páris Alexandre abraça, entregando-lhe / em meu lugar um ícone de ar a mim / idêntico, forjado de um fragmento do éter. / E pareceu a Páris que me possuía, / quando em verdade tinha um simulacro oco.” Estas duas últimas palavras podem ilustrar algo do procedimento tradutório voltado à valorização de aspectos estéticos do texto: “simulacro oco”, combinação que oferece um eficiente efeito sonoro, corresponde à também soante sequência kenèn dókesin, que poderia ser traduzida, por exemplo, por “imagem vazia”...

No livro Mitos e Imagens Míticas, o também professor e tradutor de tragédias Jaa Torrano – criador de uma ampla obra tradutória das mais consistentes em nosso país, inicialmente reconhecido por sua tradução da Teogonia, de Hesíodo – afirma, num dos dez ensaios que compõem o volume, que “o pensamento mítico opera unicamente com imagens; nele, não existe o conceito, no sentido de uma percepção intelectual que se produz por elaboração do raciocínio; nele, tudo é imediatamente dado através de imagens”. Embora a imagem esteja limitada ao particular, o pensamento mítico seria capaz de pensar o universal por meio da função da noção mítica de Theós, “Deus(es)”, que seriam “os aspectos fundamentais do mundo, ou, melhor, as imagens com que se pensa o mundo, que nos remetem aos aspectos permanentes, fundamentais do mundo”. O conjunto de artigos – os quais “estudam o pensamento mítico documentado na Teogonia de Hesíodo, nos hinos homéricos, nas tragédias e nos Diálogos de Platão” – oferece um mergulho em águas densas de investigação do tema a partir da compreensão da palavra no antigo contexto mítico: “Nos poemas homéricos e hesiódicos, todas as palavras remetem a algo concreto, que pode ser indigitado e percebido mediante os sentidos corporais, ou seja, todas as palavras descrevem imagens e somente imagens”. Mas “essa prístina forma de pensar o mundo do gregos antigos ainda nos permanece acessível?” Talvez a melhor resposta seja: sim e não...

O livro de Torrano e sua própria linguagem podem imergir o leitor no mundo distante a que se reporta. O autor procura a compreensão do mundo dos deuses mediante as referências que lhe são próprias, evidenciando que o ponto de vista de uma cultura diversa determinará, em princípio, o entendimento desse mundo; para ele, “a nossa mais isenta ciência se nutre do sentimento de nosso próprio tempo”. 

Baseia-se nessa ideia a demonstração – por meio de um acurado estudo dos nomes e seus atributos – de que, ao fazer corresponder “Abismo” ao nome Kháos (“Caos”), e considerar “Abismo” no mesmo sentido que Tártaro, o famoso helenista francês Jean-Pierre Vernant (em seu livro O Universo, Os Deuses, Os Homens) deixaria comprometido o entendimento da relação entre Kháos e Gaîa (“Terra”), deuses cujos nascimentos são contados pelas Musas nos versos 116 a 122 da Teogonia: “Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também/ Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,/ dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,/ e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,/ e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais,/ solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos/ ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.” 

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Será instigante, leitor, conhecer a importância dessa relação por meio do estudo de Torrano. Para ele, “a imagem vernantiana do mundo reproduz e conserva o sentimento de insegurança e de instabilidade do mundo depois da bomba de Hiroshima e Nagasaki e durante a chamada Guerra Fria”, transmitindo “algo mais inquietante e perturbador do que havia no texto hesiódico”. 

Nossa visão do mundo mítico só poderá se dar pela via do pensamento conceitual, “sem o qual hoje nada podemos compreender”: um dos artigos do livro discute o papel da filosofia de Platão como “servidão de passagem” entre nosso pensamento conceitual e o pensamento mítico; outro, o modo como “a tragédia se apropriou do legado” deste último. Do mergulho nesse mar de reflexões sobre mundos distintos, pode-se emergir para a visão de horizontes mais largos do conhecimento.*MARCELO TÁPIA É DOUTOR EM TEORIA LITERÁRIA PELA USP, ENSAÍSTA E POETA. AUTOR DE ‘REFUSÕES – POESIA 2017-1982’ (ED. PERSPECTIVA)

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