Três peças do acervo

A datilógrafa, o fotógrafo e a professora. Como Bardi, Lina e Chatô, eles construíram o museu

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Dona Eunice é a mulher do cofre. A dona do acervo. Podem baixar no Masp os fantasmas de Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi, fundadores do museu - mas eles só terão acesso ao terceiro subsolo, onde fica o grosso da coleção, se falarem com a dona Eunice. Mesmo que Chatô e Bardi atravessem as paredes, seus espectros encontrarão pela frente a casamata que abriga cerca de 9 mil obras de arte, entre Rafael, Botticceli, Renoir, Monet, Cézanne, Degas. De vez em quando a dona Eunice leva alguém para passear lá embaixo. Mas ela tem de ir com a cara da pessoa. Bardi e Chateaubriand terão dificuldades. Eunice Moraes Sophia é a coordenadora de acervo do Masp. Tem 73 anos e uma memória de aliá. É capaz de apontar um quadro do museu e acertar o seu número de inventário: "Aquele ali é o 192". Dona Eunice é responsável pela documentação, preservação e exposição das obras. Se uma mostra exibe 300 itens da coleção, significa que a dona Eunice subiu e desceu à casamata 300 vezes. Para cada peça, há uma pasta no arquivo, que pode ser consultada por estudiosos. Todos os dias a dona Eunice acrescenta às pastas novos documentos - dados históricos, fotografias, protocolos, pedidos de empréstimo. A proximidade com o rigor dos inventários a transformou numa arquivista de si mesma. Toda conversa, por mais prosaica, a dona Eunice encerra do mesmo jeito: "Eu tenho tudo documentado". Dona Eunice nasceu em Poços de Caldas, e desde pequena queria ser artista. Mas como "artista e prostituta era a mesma coisa", o pai dela estipulou um teto: "No máximo secretária executiva". Restou a dona Eunice correr atrás do prejuízo. Aos 10 anos, foi a mais jovem a se formar na Escola Remington de datilografia ("Eu tenho tudo documentado!"). No ano seguinte veio estudar em São Paulo. Cursava o Instituto de Educação Caetano de Campos quando descobriu que podia cabular aulas no prédio do Masp, à época localizado na Sete de abril, centro da cidade. Um casamento e três filhos depois, a dona Eunice, então com 27 anos, apertou o "dane-se" e foi fazer a Faculdade de Belas Artes. No começo dos anos 80, dona Eunice não era artista, mas era uma excelente professora. Dava aulas na própria Faculdade de Belas Artes. Tinha feito no Masp o primeiro curso de museologia ministrado por Pietro Maria Bardi, e começou a trabalhar lá também, voluntariamente, guiando alunos e formando turmas de monitores. Quando passou em um concurso público para museóloga da Secretaria Estadual de Cultura, foi obrigada a abandonar o Masp e assumir um cargo na Pinacoteca. Chegou a escrever uma carta para Bardi, na esperança de que lhe desse uma vaga remunerada. Mas o mestre não captou a mensagem, tendo respondido apenas um "obrigado pelo trabalho que você fez". A dona Eunice ficou muito frustrada, e guardou a resposta entre os seus documentos pessoais. Em 1989, dona Eunice foi emprestada ao Masp pelo Estado. Em 90, exonerou-se e foi finalmente contratada. "Melhor do que isso, só o Metropolitan de Nova York." * * * Outra peça raríssima é o senhor Luiz Sadaki Hossaka, 79 anos, "um pé na cova e outro na casca da banana". Uma peça também muito versátil - na história do Masp, não há função que o Luiz Hossaka não tenha desempenhado. Atendeu o público, ajudou a montar exposições, trabalhou na programação do antigo cinema, fez pesquisas para o inventário e carretos de obras milionárias para Bardi e Chatô. Foi sobretudo o fotógrafo oficial do museu, numa época em que a simples reprodução das imagens das obras estava sujeita às regras inflexíveis do direito autoral. Nos anos 90, ele assumiu a curadoria da casa, sob o título de "conservador-chefe". Ficou no posto por dez anos - mas, "não havendo verba para nada", o Luiz Hossaka passou todo esse tempo praticamente coçando Hossako. Na vida do senhor Luiz Hossaka, que é nascido em Birigüi, interior paulista, as coisas relevantes foram acontecendo ao acaso. Um dia, por exemplo, ele estava andando de bonde quando viu "o anúncio das novas rotativas dos Diários Associados", de propriedade de Assis Chateaubriand. Rotativas são as máquinas que imprimem os jornais. Ninguém deseja ardentemente estar diante de uma rotativa. Mas o Luiz Hossaka não se agüentou e foi até a sede do diário, na rua Sete de Abril, ver com os próprios olhos o novo equipamento. Chegando lá, encontrou um museu no andar térreo. O museu ministrava alguns cursos. Luiz Hossaka tinha acabado de terminar o colegial, que vem a ser o ensino médio de hoje em dia. Ele andava bem duro, coitado. Mas havia uma possibilidade: o curso de música. Era de graça. Luiz Hossaka não tinha nenhuma relação com música. Inscreveu-se. Moral da história: vá conhecer umas rotativas, faça um curso de música, e o emprego no Masp será seu. Luiz Hossaka lotou-se primeiro no prédio da Sete de Abril, onde o museu funcionou até a segunda metade de 1968. Certa noite, sozinho no segundo andar, recebeu a ligação de um assistente de Chatô: "Ele quer quatro quadros para um jantar que está organizando esta noite no Rio de Janeiro". Luiz Hossaka avisou que não havia mais ninguém ali àquela hora. Não teve conversa. Com as telas sob o sovaco, tomou um táxi e depois o avião. Para não despachá-las no check-in, e nem pagar pelos bilhetes, havia uma senha: "Chateaubriand". Viajaram em cinco assentos - um para cada quadro, mais o Luiz Hossaka. A regra acabou virando esta: se o traslado envolve algum tipo de risco, lá vai o Luiz Hossaka. Foi assim quando ele trouxe de Salvador A Missa de São Gregório, pintura datada de cerca de 1500 e cujo autor é desconhecido. Como se tratava de um grande painel, o jeito foi viajar de caminhão. Mas, vendo que a peça não poderia ficar solta na caçamba, a solução era preenchê-la com algumas toneladas de areia, de forma a amortecer os impactos. O problema é que de noite o comércio ficava fechado. Luiz Hossaka não teve dúvida: pôs meia dúzia de funcionários dos Diários Associados para cavucar a Lagoa do Abaeté. Agora são outros tempos e o Luiz Hossako está de novo na ativa. "A minha função hoje, rapaz... Essa é uma boa pergunta... A máquina está tão azeitada que o piloto automático já prescinde da minha pessoa." * * * Eugênia Gorini Esmeraldo, 60, queria ser jornalista. Ela até é jornalista. Nascida em Nova Veneza, Santa Catarina, formou-se pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mas em 1968 a Eugênia foi fazer uma entrevista e acabou casando com o entrevistado. Poderia candidatar-se a rainha de bateria do Imprensa que Eu Gosto, o bloco de carnaval da categoria. Mas não deu tempo. Ela se mudou com o marido para São Paulo e acabou desgostando de procurar emprego. Em 1978, fez inscrição no curso de museologia do Masp. A dona Eunice era sua colega. Terminado o curso, Eugênia foi convidada para estagiar no museu. Assim como a dona Eunice, que tinha se formado em datilografia aos 10 anos, ela também era uma excelente batedora de máquina, forjada nas redações de jornal. Pietro Maria Bardi identificou logo essa qualidade na Eugênia. E como ele só escrevia à mão, foi logo estendendo sobre ela os seus tentáculos. Com a Eugênia o Bardi era "brincalhão, cortês e generoso". Costumava chegar ao Masp às 9 da manhã. Ficava até as 5 da tarde. Tinha duas tarefas principais: "receber personalidades e escrever cartas" - pessoais, de agradecimento a doadores, em resposta a pedidos de empréstimos. Tão logo escrivinhava lá as suas coisas, entregava os garranchos para a Eugênia se virar. Gostava de usar termos em italiano e na maioria das vezes não admitia tradução. Com o tempo, a Eugênia já estava íntima dos amigos e parceiros de Bardi, embora nunca tivesse visto a maioria deles. Ela guarda em sua casa muitos dos manuscritos "do professor", de quem se tornou uma grande amiga. Quando a Eugênia chegou ao Masp, Pietro Maria Bardi estava com 78 anos. A idade jamais arrefeceu o ânimo de "olhar as mulheres de cima abaixo" - embora fosse "carinhoso e respeitoso" com Lina Bo Bardi, a autora do novo projeto arquitetônico do museu, com quem era casado. Para o lado da Eugênia, não consta que tenha arrastado a sua asa: "Jamais". Eugênia estava na sala de Bardi quando ele sofreu uma ruptura da aorta. Ficou um mês na UTI. Afastou-se definitivamente do museu em 1996. Morreu no dia 10 de outubro de 99. Hoje, a Eugênia é chefe da coordenadoria de Intercâmbio do Masp. É ela quem negocia o empréstimo das obras do museu. Ainda faz tudo por carta, como manda a liturgia: "Já imaginou o Louvre me mandando um e-mail? Seria o fim".

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