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Trump inspira comparações com déspotas da literatura

De Ubu Rei, de Alfred Jarry, e Berzelius 'Buzz' Windrip, de Sinclair Lewis, até Tom, de 'O Grande Gatsby', presidente dos EUA é comparado a personagens de livros cautelares

Por Sérgio Augusto
Atualização:

O pior do insulto é não saber do que fomos xingados, e passar recibo de ignorante. Talvez por isso valha a pena xingar Trump de “Ubu Rei da Casa Branca”, pois ele não deve ter noção de quem foi Ubu. Tampouco adianta compará-lo a Nathan “Shagpoke” Whipple. Ou a Berzelius “Buzz” Windrip. Ou a Arturo Ui.  A Hitler e Mussolini, tudo bem. Esses ele conhece.

Caricatura de Trump compara o presidente dos EUA ao Ubu Rei de Alfred Jarry Foto: Simon Winheld

Quantos livros Trump deve ter lido na vida? Um pouquinho mais que os folheados por Bolsonaro, deduzo com base unicamente na espessa incultura do Capitão Cloroquina. Ubu Rei, desde que foi criado pelo poeta e dramaturgo francês Alfred Jarry (1873-1907), tornou-se um marco do teatro do absurdo e seu personagem-título, um paradigma da ambição desmedida e do despotismo mais despudorado e cruel. Paródia farsesca de Macbeth ambientada na Polônia, mal estreou, em 1896, teve sua encenação proibida na França. É uma antecipação caricata do reino trumpiano.  Nathan “Shagpoke” Whipple é o déspota da sátira voltairiana de Nathanael West, A Cool Million, publicada um ano antes da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. Embora seja outro o herói (ou mártir) do livro, é Whipple quem monopoliza a narrativa, o personagem que lhe dá distinção – e antecipa Trump.  Racista, xenófobo, inimigo com igual ferocidade do comunismo e do capitalismo internacional, defensor fanático da superioridade dos americanos “genuínos” (brancos e protestantes), Whipple foi menos inspirado em Calvin Coolidge, presidente dos EUA entre 1923 e 1929, do que em Mussolini e seu sucedâneo ianque, William Dudley Pelly, supremacista branco que, inspirado pelos camisas pretas que seguiam o duce italiano, lançou na América os “silver shirts” (camisas cinzas). Sua retórica banhada em otimismo barato e clichês corporativistas lembra as empolgadas platitudes que notabilizariam Ronald Reagan, quatro décadas mais tarde. Berzelius “Buzz” Windrip era o Hitler de outra ficção distópica da década de 1930, Não Vai Acontecer Aqui, de Sinclair Lewis. Sua maior ambição: fazer com que todos os americanos acreditassem que “são e precisam continuar sendo a maior raça sobre a face da Terra”. Assim recomendou num livro-manifesto intitulado Zero Hora, caricatura do Minha Luta, de Hitler, antes de chegar à Casa Branca embalado pelos setores mais retrógrados da Igreja Católica. Ninguém acreditava que a América pudesse virar um estado nazifascista. Mas, na imaginação de Lewis, virou.  Racista, xenófobo, jingoísta, Windrip perseguia judeus, negros, divorciados, estrangeiros e artistas, e tornou obrigatório o culto à Bíblia e à bandeira, entre outras medidas autoritárias. Negros não podiam votar, trabalhar em órgãos públicos ou exercer a advocacia. Os condottieri de Windrip não usavam camisas cinzas, mas uniformes iguais aos dos cavalarianos sulistas durante a Guerra Civil.  Arturo Ui era um monstruoso amálgama de Al Capone, o gângster afinal preso como sonegador de impostos, e Ricardo III, o shakespeariano monarca assassino. Brecht inventou-o na 2.ª Guerra Mundial, numa sátira alegórica ambientada em Chicago e intitulada A Resistível Ascensão de Arturo Ui. A ascensão de Trump foi irresistível, nem como sonegador foi deposto, mas queiram os fados que em 3 de novembro tenha o mesmo fim dos ogros literários até aqui relacionados. Vez por outra, comentaristas americanos aproximam Trump e a nababesca bolha em que ele vive do romance nada distópico de F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby. Publicado em 1925, talvez seja o mais fiel retrato da América dos anos que antecederam a Grande Depressão. Anos de arroubos idealistas, sonhos desfeitos e resistências a mudanças sociais afloradas. Anos sobretudo de excessos, de consumo conspícuo, de ganância desenfreada e arrogância classista, que Nick Carraway, narrador da história e vizinho do protagonista Jay Gatsby, testemunha e descreve com invejável acuidade. Há uma observação no romance sobre a “irresponsabilidade dos ricos” e sua tendência a destruir objetos e pessoas, para em seguida se recolherem às suas fortunas e aos seus privilégios, “enquanto outras pessoas limpavam a sujeira deixada por eles”, que é uma síntese perfeita do way of life da elite financeira e patrimonialista da América. Sempre citada a propósito do comportamento usual dos Trumps e seu círculo de cortesãos, a observação ilustra bem até a “indiferença com o outro” explicitada nas aglomerações de ruas, praias, bares e clubes, durante a pandemia. Jamais comparam Trump a Gatsby, e sim a Tom Buchanan, marido de Daisy, a paixão de Gatsby. Tom é “dinheiro velho” e Gastby, “dinheiro novo”, daí ser considerado um parvenu e tratado com certo desdém pela elite decadente da Costa Leste. Rugby, não golfe, é o esporte favorito de Tom, cuja descrição (“vigoroso”, “rude”, “grandalhão”, “um brutamontes” de olhar arrogante, com “a aparência de quem está sempre a ponto de agredir alguém”) assemelha-o bastante ao bugre da Casa Branca. Não bastasse, Tom é um supremacista raiz, entusiasta das teorias que Lothrop Stoddard disseminou em The Rising Tide of Color, editado em 1920, que o rival de Gatsby assim resume para Daisy: “A ideia é que, se não tivermos cuidado, a raça branca será completamente subjugada. Compete a nós, que pertencemos à raça dominante, estar atentos; do contrário, essas outras raças dominarão o mundo.” Parafraseando Thomas Jefferson, o preço da supremacia racial também seria a eterna vigilância.

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