Última obra de Ricardo Piglia revela relação com Borges e Joyce

Escritor argentino morto em janeiro de 2017 terá 'Formas Breves' e 'O Último Leitor' reeditados no Brasil

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Por Sérgio Medeiros
Atualização:
Ricardo Piglia segura um exemplar de seu livro 'O Último Leitor' 

O escritor argentino Ricardo Piglia morreu em Buenos Aires no dia 6 de janeiro aos 75 anos, considerado pelos seus pares e pela crítica internacional como um dos maiores ficcionistas e ensaístas latino-americanos contemporâneos. Quando recebeu a notícia de que era portador de esclerose lateral amiotrófica (ELA), em 2004, o romancista passou a trabalhar intensamente na preparação para publicação da trilogia, ainda inédita em português, Los Diarios de Emilio Renzi, uma vasta obra autobiográfica assinada com o nome de seu alter ego, que protagoniza sua ficção mais aclamada, Respiração Artificial.

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O primeiro volume, Años de Formación, saiu no final de 2015, e o segundo, Los Años Felices, no final de 2016. O terceiro e último volume, Un Día en la Vida, ainda não foi publicado. No primeiro volume, Renzi/Piglia afirma: “O maravilhoso da infância é que tudo é real”; no segundo, declara: “Entro na idade da razão”, embora acrescente em seguida que evita as responsabilidades sociais e que sabe menos de si mesmo do que dos amigos próximos. E estes são muitos e dialogam o tempo todo com o narrador dos diários, que registra, no segundo volume, em pequenos textos (formas breves), seus encontros com eles em bares e festas, sempre discutindo literatura e política, entre 1968 e 1975, em Buenos Aires e Mar del Plata. 

A importância da vida social (que facilmente se confunde com vida intelectual, em Buenos Aires) é tão grande nesses diários que a abertura de Los Años Felices está situada num bar, onde Renzi conversa com o barman de El Cervatillo e reflete sobre sua decisão de continuar publicando os “cadernos” que escreveu ao longo de mais de meio século, a partir de 1957, quando tinha apenas 17 anos de idade. A experiência pessoal, escrita nos diários, é influenciada pela história e pela política, mas é a voz dos amigos que confere a estas páginas o seu sabor característico. No segundo volume, rouba a cena o escritor David Viñas, um romancista e dramaturgo que nutria um grande rancor por Julio Cortázar e cujas atitudes turbulentas, na vida amorosa e profissional, Piglia registra minuciosamente, sem fazer julgamentos. Viñas talvez não seja um grande escritor como Cortázar, mas é, nos diários, um dos personagens mais complexos e fascinantes, pois oferece ao leitor o paradigma de companheiro sem o qual Piglia não parece capaz de sobreviver na metrópole. O tempo todo, quando ele está em casa, alguém bate à sua porta para dizer-lhe algo; depois vão ao bar mais próximo conversar até esgotarem o assunto, o que nem sempre parece possível. Nessas conversas intermináveis sobre arte e cultura o Brasil não é mencionado, pois Piglia parece pouco interessado na nossa literatura e no nosso cinema; fala com admiração, porém, de dois gênios do futebol brasileiro, Pelé e Gérson, mas parece desdenhar Glauber Rocha.

Curiosamente, enquanto escritor, Piglia se sente apartado de todos os seus contemporâneos, e mesmo dos grandes amigos, como Viñas, a ponto de afirmar: “Não estou em nenhum lado, por sorte não pertenço à minha geração, nem tampouco a nenhuma classificação dos escritores atuais”. Essa sensação de isolamento (“a sociabilidade e os amigos tornam possível a vida, mas sempre preferi estar só”) se traduz na sensação de que escreve contra a corrente, mas alimenta também um certo rancor contra o meio literário portenho: o jovem Piglia está ausente das antologias literárias contemporâneas. “O desprezo de Dedalus (Stephen Dedalus, o escritor imaginário criado por James Joyce) pela família, pela religião e pela pátria será o meu”, chega a afirmar no primeiro volume dos diários. No segundo volume, ele retoma esse tema e acrescenta: “Sou muito orgulhoso e estou muito seguro de meu valor para rogar que prestem atenção em mim”.

Nessa época de silêncio assumido ou imposto, Piglia havia publicado apenas um livro de contos, mas já era considerado um dos jovens mestres argentinos nesse gênero que deu fama mundial a Jorge Luis Borges, escritor muito comentado nos diários, sobretudo no primeiro volume, no qual ele surge, ao lado de Macedonio Fernández, como aquele que colocou a literatura argentina no mesmo nível das estrangeiras. E é com essa mesma aura que ambos reaparecem no início do segundo volume, para logo serem postos em segundo plano por Viñas e outros autores que se destacam, não por serem genais, como aqueles gigantes, mas pela capacidade de sobreviver, com sua literatura, à perseguição política e ao caos social numa Argentina em convulsão que eles, inicialmente, não abandonam.

O primeiro encontro de Piglia com Borges, já escritor maduro, teria ocorrido na infância, em meio a um clima maravilhoso. É o que se lê nas páginas iniciais de Años de Formación, que começa num bar, onde Renzi/Piglia rememora sua infância em Adrogué e suas primeiras leituras: “Vivíamos em uma zona tranquila, perto da estação ferroviária, e a cada meia hora passavam diante de nós os passageiros que haviam chegado no trem da capital. E eu estava ali, na porta, exposto, quando de repente uma grande sombra se inclinou e me disse que eu segurava o livro de cabeça para baixo”. Esse estranho que se dirige a uma criança de três anos com um livro nas mãos poderia ter sido Borges, que nessa época costumava passar o verão no Hotel Las Delicias, em Adrogué. 

Como essa memória da infância vem à tona num “bar de Arenales y Riobamba”, a conversa prossegue falando de um ingrediente importante dessa trilogia autobiográfica: a bebida. De Borges passa-se a Joyce, que apreciava beber Fendant de Sion, um vinho branco que Renzi/Piglia também consome generosamente. “Pediu um Fendant de Sion..., era o vinho que tomava Joyce, um vinho seco, que o deixou cego”, escreve o narrador. E acrescenta: “Joyce o chamava de Arquiduquesa, por causa da cor ambarina e porque o bebia como quem, pecaminosamente – à maneira de Leopold Bloom (protagonista de Ulisses)–, bebe o néctar loiro avermelhado de uma mocinha núbil aristocrática que se agacha desnuda...”. 

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Essa referência ao vinho joyciano não é uma curiosidade, já que o escritor irlandês, assim como Borges, exerceu forte influência sobre Piglia. Ambos, Joyce e Piglia, beberam na mesma fonte, ou da mesma garrafa, e celebraram, cada um à sua maneira, seu amor às mulheres. Os diários estão repletos de mulheres atuantes, tal é a importância delas na vida e na literatura do grande autor argentino. 

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