Último livro de Umberto Eco reúne 178 crônicas do autor italiano

Textos escritor entre 2000 e 2015 para o jornal italiano 'Espresso' falam sobre preconceito, cultura, política, religião e tecnologia

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Por Carlos Eduardo Entini  
Atualização:
Escritor Umberto Eco, morto em 2016, autor de 'Pape Satán Aleppe' Foto: Andrea Barbiroli/Estadão

Pape Satàn Alleppe, o grito incompreensível dado por Plutão ao ver Dante Alighieri e seu guia Virgílio entrarem no quarto círculo do Inferno é título do livro póstumo de Umberto Eco (1932-2016). A obra foi lançada na Itália pouco depois de sua morte, em fevereiro de 2016. O livro, uma seleção de crônicas escritas entre 2000 e 2015 na coluna La Bustina de Minerva, publicada pelo autor desde 1985 no jornal italiano Espresso, acaba de receber uma versão em português pela Editora Record.

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O verso que abre o canto VII do Inferno ganha significado no livro de Eco. Ele utiliza de propósito a falta de sentido do grito para ilustrar uma sociedade que não consegue se entender, desconexa, em permanente crise, e da qual emerge um “individualismo desenfreado em que ninguém é companheiro de estrada, mas antagonista”. 

As 178 crônicas, divididas em 14 capítulos presentes no livro foram escolhidas pessoalmente pelo intelectual italiano. A escolha levou em consideração a reflexão sobre o fenômeno da sociedade líquida, teoria desenvolvida pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). Por isso o subtítulo do livro, Crônicas de uma Sociedade Líquida. Isso não quer dizer que todas as crônicas tenham relação direta com o assunto.

Nos versos de Dante, os danados do canto VII – os avaros e os pródigos, cada grupo de um lado – percorrem o círculo empurrando pesos enormes e só param quando esbarram no outro. Daí se insultam e continuam o giro inútil em sentido contrário. A imagem de cada danado empurrando peso e girando sem sentido é a tradução da individualidade despontada com o fim da “grande narração” que dava ao mundo um modelo de ordem. 

Para Umberto Eco, essa crise fez desaparecer as instituições capazes de resolver de modo homogêneo os vários problemas do nosso tempo. A liquefação da sociedade, segundo ele, não tem previsão para acabar. E ninguém sabe o que poderá substituí-la. A certeza é que nesse momento ninguém sabe o que quer, mas todo mundo sabe o que não quer. E, como o movimento dos black blocs, é difícil rotular o período. Ou seja, sabemos que eles vão agir, mas não para qual lado. A solução no momento seria perceber que vivemos nesse fenômeno e precisamos de novos instrumentos para compreendê-lo e talvez superá-lo.

Ao ler as crônicas, percebe-se que Eco usa a memória e a história para ao menos nos dar um ponto de partida nesse momento onde tudo acontece com rapidez de tirar o fôlego da nossa compreensão. Por exemplo, para ele as situações de ódio que presenciamos diariamente, no Brasil e no mundo, nas redes sociais e nas ruas, nada mais são do que parte integrante da nossa espécie.

A história da humanidade sempre foi marcada por ódio e massacres, e não pelo amor. A razão, ainda segundo o autor, é que o ódio, ao contrário do amor, é um sentimento coletivo que tem a capacidade de unir ao colocar todos ardendo num mesmo fogo. Já o amor é um sentimento mais íntimo, portanto incapaz de reunir as massas. 

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Em Pape Satàn Alleppe, Eco aborda assuntos díspares como religião, racismo, xenofobia e política italiana. E temas presentes em seus livros de ficção, como mass media (A Misteriosa Chama da Rainha Loana, Número Zero) e conspirações (O Pêndulo de Foucault, O Cemitério de Praga). Para esses assuntos, ele dedicou capítulos especiais. 

E é claro que as novas tecnologias não escaparam da observação do autor. Nesse tema, poderia se esperar de um bibliófilo como Eco uma visão catastrófica da internet e dos novos hábitos de pesquisa e leitura no mundo digital. Como também uma nostalgia em relação ao passado, quando tudo era mais claro, organizado e previsível, tal qual um livro. Mas o escritor, que em vida teve uma biblioteca de mais de 30 mil livros, coloca no centro a história para dar um norte. Ele mostra que o mundo digital e sua incontável quantidade de informação produzida nada difere em essência do que tem ocorrido em toda a história da cultura. 

A cultura sempre foi um acúmulo de dados, mas também ela sempre teve o esforço de filtrar as informações. No final, nossa cultura é resultado da capacidade de filtrar. Sem essa capacidade de jogar fora aquilo que não é útil ou necessário cairíamos no dilema de Funes, o Memorioso, do conto homônimo de Jorge Luis Borges. Funes é um personagem que recordava tudo, por isso era um homem bloqueado pela sua incapacidade de selecionar e de desprezar informações irrelevantes. Portanto, a história da cultura e da civilização é feita de toneladas de informações que foram enterradas, diz Eco. 

A filtragem de informações é um tema recorrente em diversas crônicas presentes em Pape Satàn Alleppe. Mas como filtrar se o trabalho dos editores, figura essencial do mundo gutemberguiano, foram jogados para escanteio no mundo da internet? Para Eco, a técnica da edição deveria ser ensinada nas escolas. Decidir quais informações devem ser guardadas ou descartadas é uma “arte sutil”. Ao atravessar as 420 páginas do livro, temos a impressão que o nosso Virgílio não nos livra completamente das nossas danações, mas nos mostra que, se tomarmos os fatos cotidianos com a perspectiva da história, o fardo será menos dolorido.

Capa do livro 'Pape Sàtan Aleppe', de Umberto Eco 

Pape Satán Aleppe Autor: Umberto EcoTradução: Eliana AguiarEditora: Record 420 páginas R$ 59,90

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