Um abominável legado de tortura

Em ritual sádico, o carrasco sevicia, humilha e administra a dor

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Por Álvaro Caldas
Atualização:

Mais de 40 anos decorridos desde o golpe militar de 1964, o abominável legado da tortura, dos mortos e desaparecidos ainda paira sobre nós. A ditadura durou 21 anos e parte de seu acervo de arbitrariedades, incluindo a localização dos corpos dos desaparecidos políticos, continua trancada nos arquivos militares. Se não tiver coragem para remover esses escombros, a sociedade não conseguirá se livrar de seus fantasmas. Num angustiado ensaio escrito em meio ao espanto e à indignação provocados pela revelação dos porões da guerra da Argélia, Sartre advertiu que "a tortura não é civil nem militar, nem tampouco especificamente francesa, mas uma praga que infecta toda nossa era". Naquele momento, entre l957 e 1958, os franceses tomaram conhecimento de que o Exército francês e as forças policiais da colônia empregaram sistematicamente a tortura ao enfrentar os rebeldes argelinos, levando a uma comoção generalizada. Esta catarse o País ainda não teve coragem de fazer. A decisão do governo de finalmente reconhecer os crimes praticados pela ditadura em nome do Estado brasileiro, com a divulgação do livro Direito à Memória e à Verdade, é um passo importante, mas insuficiente, nessa direção. É a primeira vez que o Estado apresenta o número oficial de desaparecidos políticos. Ao longo de seu trabalho, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos analisou 475 casos. As investigações pararam nesse ponto, por temor a uma suposta reação dos militares a um ato de revanchismo, cujo verdadeiro nome é impunidade. Teria sido também revanchismo a reabertura do IPM do Riocentro, em 1999, que apontou a responsabilidade dos militares do DOI-Codi no atentado, livrando o País de uma farsa vergonhosa que durou 18 anos? O coronel Wilson Machado, que estava no Puma que explodiu, foi indiciado por homicídio qualificado juntamente com outros três militares que o acompanhavam. A verdade histórica e as futuras gerações agradecem. A impostura que encobre a situação dos mortos sob tortura precisa ser esclarecida. Para isso é preciso que a sociedade cobre e o presidente assuma seu papel de comandante das Forças Armadas, determinando a abertura dos arquivos que encobrem os crimes praticados e seus autores. Mas já no ato público realizado no Palácio o presidente voltou a dar sinal de fraqueza ao não demitir os comandantes militares que, convidados, a ele não compareceram. Gestada nos porões da ditadura militar, a infecção da tortura constitui um dos seus legados mais nocivos à sociedade brasileira. Seus tentáculos se espalharam, aproveitando-se do ambiente propício ao abuso de autoridade, à impunidade, à corrupção e à violência policial. Prática institucionalizada pelo regime ditatorial, a tortura tornou-se um poderoso instrumento da política repressora do Estado. À custa de muitas vidas, de centenas de mortos e desaparecidos, de terríveis seqüelas, físicas e morais. Naquele solitário e abjeto embate que se trava numa prolongada sessão de suplícios, o torturador não se contenta com a rendição do torturado. Ele quer apossar-se de sua alma, despojá-lo de seus valores, tornar-se dono de sua voz para transformá-lo num delator. O carrasco sevicia, humilha e administra a dor para arrancar informação, num sádico ritual que pode acabar em um cadáver. Mário Alves, dirigente do PCBR, foi torturado, empalado e assassinado nos porões do DOI-Codi do Rio, em 1970. Sua morte foi reconhecida por sentença judicial em 1981. Mas sua filha Maria Lúcia não pôde velar seu corpo, porque ele se tormou mais um desaparecido do regime. Com uma centena de outros presos políticos, convivi com os sussurros, as lamentações e os gritos de sua forte presença, que ainda ecoavam pelos corredores do DOI-Codi quando lá fui torturado, no final de fevereiro de 70. Mário, um intelectual e combatente de rara diginidade, apenas reconheceu ser do PCBR, para desespero dos algozes. No Brasil, ainda não abrimos uma dicussão para passar a limpo essa história. Quando tomou conhecimento dos crimes praticados em seu nome na Argélia, a França levantou-se, indignada. Após l957, quando as denúncias se intensificaram na imprensa, a mobilização de repúdio da sociedade cresceu e contribuiu para a queda da Quarta República e, a seguir, a independência da Argélia, em 1962. Abriu-se um debate nacional, envolvendo intelectuais do porte de Sartre e Camus. A imprensa teve papel relevante, contribuindo para revelar a gravidade dos fatos. Na América Latina, o violento legado dos anos de terror permanece à sombra. Com o fim das ditaduras militares no Brasil, Argentina, Uruguai e Chile, dramas pessoais foram expostos, mas a ação criminosa e terrorista dos Estados continua encoberta. São segredos militares que permanecem fechados. Na Argentina, o presidente, Néstor Kirchner, derrubou as leis da impunidade feitas na ditadura e depois dela e transformou a temida Escola de Mecânica da Marinha (Esma), principal centro de tortura, em museu para preservar a memória dos presos políticos mortos e desaparecidos. Exemplo que o governo brasileiro poderia seguir, transformando em museu e abrindo ao público as instalações do DOI-Codi no Rio de Janeiro. Não tivemos um movimento de massas de repúdio à praga da tortura porque não se deu à opinião pública informações sobre a profundidade da infecção. A covardia e os interesses de uma parte da sociedade, que transitou da ditadura para a democracia mantendo postos no poder e nas Forças Armadas, e uma imprensa que não se empenhou em recuperar esse passado contribuíram para que os brasileiros não tivessem essa informação. As bandeiras de denúncia, os cartazes com mortos e desaparecidos e o grito de "Tortura nunca Mais" continuaram, como se ainda ditadura fosse, nas mãos de grupos politizados, entidades de anistia, mães e familiares, ou seja, em pequenos guetos. Como se ainda vigorasse o regime de opressão e essas fossem bandeiras da esquerda, de revanchistas, e não uma questão de interesse geral. Poucos brasileiros conhecem de fato essa história. Os jovens ficam horrorizados quando são informados. Se chegou o momento de buscar a verdade, aos arquivos, pois. * Álvaro Caldas é jornalista, professor da PUC-Rio e escritor. Autor de Balé da Utopia e irando o Capuz, primeiro livro de um ex-preso político a descrever os horrores da tortura

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