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Um dia por vez

A doença traz perdas de movimento irreversíveis. Resta a contagem regressiva pela cura

Por Monica Manir
Atualização:

Luzia via, mas fingia não ver. O então marido nem cogitava a hipótese. O médico queria operar o tendão do menino porque ele só andava na ponta dos pés. Mas a irmã de Luzia já tinha percebido o evidente: Ítalo tropegava, como tropegavam os tios dele no passado. O moleque tinha 3 anos e andava sem prumo, tinha dificuldade para subir escadas, esgueirava-se nas paredes, caía por qualquer coisa. Para se levantar do chão, escalava as próprias pernas, apoiando as mãos nos joelhos. A panturrilha inchava feito pão. Havia um sinal forte de distrofia ali. A irmã sugeriu que Luzia procurasse logo um médico (não o do tendão) para tirar a dúvida, mesmo já tendo feito um exame de sangue comum aos 14 anos, que não deu nada. Na época, d. Nena e seu Pedro, pais de Luzia, receberam a orientação de encaminhar a família para um laboratório. Dos sete filhos, Nardo e Duda já haviam morrido de uma doença "esquisita", e Celso não andava mais. Os três passaram por estágios semelhantes do distúrbio: ficaram mirrados, frágeis, com o tronco frouxo e os braços sem força para erguer um copo de plástico vazio. D. Nena soube que fora ela a passar a agrura para os meninos. Algo que não compreendeu bem, mesmo porque outro filho homem, o Zinho, andava normal. Mas seria melhor que as três filhas entendessem isso direito porque o médico avisou que elas poderiam transmitir a mesma sorte para os futuros netos de d. Nena. Em 1990, já no laboratório da USP, o teste de DNA indicou que a mãe de Ítalo é portadora da distrofia muscular de Duchenne, doença causada por mutações no gene DMD (da sigla Duchenne Muscular Dystrophy), localizado no cromossomo X. Como a mulher possui dois X e o homem um só, o X sobressalente dela, que não contém a mutação, funciona como um guarda-chuva contra o efeito mais deletério da doença: a não-produção da distrofina, proteína determinante no funcionamento dos músculos. Havia 50% de risco de Luzia passar a doença para um filho homem. O mais velho, Fabrício, certamente escapara do X torto. Luzia torcia para que Ítalo tivesse o mesmo destino saudável do irmão. Mas três anos depois, conversando com uma geneticista, abriu o coração: o caçula era arteiro e ela tinha vontade de dar uns safanões nele de vez em quando, só que o filho podia ter distrofia e se machucar... Em 21 de abril de 1993, saiu o resultado positivo de Duchenne, a distrofia muscular mais comum e mais severa dentre todas: afeta 1 entre 3.500 meninos. A perda de movimentos é progressiva e irreversível. Na média, os meninos param de andar na adolescência e com 20 a 35 anos morrem por problemas respiratórios e cardíacos. O tio Duda faleceu aos 17 anos. Nardo e Celso sobreviveram até os 21. Ítalo terá essa idade em abril, mas seu currículo é mais promissor que o dos tios, assim como seu prognóstico de vida. Aos 6 anos, ele já freqüentava a Associação Brasileira de Distrofia Muscular, a Abdim. "Ia parecendo um robozinho, metade carregado no colo, metade arrastado", relata Luzia. Ali começaram as sessões de fisioterapia e o acompanhamento passo a passo da evolução da doença. A proposta da Abdim era (e é) acompanhar as perdas irrefutáveis de movimento dos portadores da Duchenne, mas evitar as compensações. Munira Tanezi Guilhon e Sá, diretora executiva da Abdin, explica que a tendência diante da impossibilidade de continuar escrevendo do jeito que se escrevia, por exemplo, é entortar o corpo para manter o movimento. Daí surgem escolioses e desvios de articulação em variados graus. Luta-se para que o paciente continue funcional na escola, no trabalho, no computador, na marcha da vida. Luzia sabia que o filho deixaria de andar em algum momento. "Mas nenhuma mãe está preparada para isso", afirma, com a experiência de 15 anos na associação ao lado de outras parceiras de via crucis. A freqüência feminina na sala de espera é praxe. Alguns pais estão trabalhando, outros se ausentam com o baque da descoberta da doença, muitos abandonam a família sem olhar para trás. Ítalo deixou de andar três dias antes de completar 9 anos. Logo herdou uma cadeira de rodas, que pedia faz tempo, "como o Harry Potter pedia a vassoura de bruxo". Fez festa para o utensílio quebrado, substituído no ano seguinte por um presente dado na rua. Estavam em frente da Abdim quando um senhor perguntou se não queriam trocar a cadeira velha por uma nova. O filho dele não tinha resistido a um acidente de carro. Na estréia do presente, uma queda de graves proporções. Ítalo pegou um desnível de chão na escola e, sem cinto de segurança, foi jogado para a frente. Quebrou os dois fêmurs, porque ninguém fala fêmures - talvez porque seja difícil quebrar ao mesmo tempo os maiores e mais robustos ossos do corpo. Ficou dois meses engessado, indo e vindo no ônibus em frangalhos da prefeitura, o que comprometeu a já dolorida coluna de Luzia. Falta fisioterapia para o cuidador. A distrofia muscular de Duchenne começa pelos membros inferiores e avança lentamente para cima. "Não é simples propor alternativas para uma determinada ação porque a solução encontrada pelo portador se cristaliza no tempo", explica a terapeuta ocupacional Adriana Nathalie Klein. Um ângulo que se mude na cadeira pode deixá-los inseguros, gritando por ajuda. Para quem está no olho do furacão, tudo passa depressa demais. Luzia não registrou exatamente quando o filho parou de lavar os cabelos sozinho, tirar as meias, abrir a torneira, virar maçanetas, cortar um pedaço de carne. Ele ainda consegue escovar os dentes, desde que bem próximo da pia e com a caneca d?água levada pela mãe à boca para o bochecho. Para abrir o portão eletrônico de casa, bate levemente com a cabeça no interfone até derrubá-lo. Se o copo for de plástico firme, ajuda com a outra mão, desce o corpo e toma o líquido. No mouse, é um ás. Por isso consegue ver sem demora a foto do conterrâneo de Abdim, César Ferreira, que tem um blog, www.cesarferreira232.multiply.com, no qual bolou uns efeitos especiais que esticam sua imagem para cima e para baixo. César tem um irmão e uma irmã com distrofia, mas só ele não anda. Moram num sobrado de três andares. Não saem do patamar do meio, a não ser nos dois dias em que têm atendimento na Abdim. Deixaram de estudar. Há degraus demais entre os cômodos, buracos demais na rua e ninguém que os leve para a escola. Marilene, a mãe, deixou de trabalhar e a família vive com a aposentadoria do padrasto. O acesso à casa de Ítalo ganhou rampa na escadaria lateral, feita pela prefeitura a pedido de Luzia, pela qual o filho sobe e desce em sua recente cadeira de rodas motorizada, que ganhou da família de um primo vítima aos 15 anos da mesma doença. A cadeira custa cerca de R$ 6 mil e pesa em torno de 100 quilos, com as baterias. Sua Ferrari lhe permite voltar sozinho da escola com os amigos, mas a independência na ladeira íngreme é inviável. Precisa do apoio da mãe para não ser atropelado por si. A noite não é uma criança para os dois. Ítalo é ligado a um bipap, ventilador artificial que melhora sua capacidade pulmonar, comprometida em 30%. Órteses evitam que suas mãos fiquem cerradas, e travesseiros o calçam entre os joelhos e entre os braços. Luzia acorda a cada duas horas para trocar a máscara de silicone do bipap e virar o filho de lado. Dói alguma coisa, Ítalo? "Não, normal, só o incômodo de ficar muito tempo na mesma posição", diz. Normal é termo corrente no seu vocabulário. Ítalo não fala palavrões e vai cobrar uma multa da mãe toda vez que ela soltar um. Aos domingos, ele assiste pela internet ao culto da Bola de Neve, igreja evangélica neopentecostal que usa um estilo pop de ser para conquistar os jovens. Ítalo ficou mó popular depois de aparecer no penúltimo capítulo de Páginas da Vida, em 2007. Contracenou com Regina Duarte e Marcos Paulo, que faziam os médicos Helena e Diogo. Ítalo fazia ele mesmo. Diogo empurra a cadeira de rodas de Ítalo. Helena pára para falar com eles. Aí rola um papo sobre a doença. - Você sabia, Helena, que tem mais crianças com distrofia muscular do que com câncer infantil? - Não sabia. Aliás, a distrofia muscular é tão pouco divulgada que o que eu sei é que muitas crianças não conseguem nem sequer o diagnóstico! - É, eu tinha dificuldade para pedalar o velocípede. Com 5, 6 anos eu caía muito e custava para levantar sozinho. Então, o médico pediu um exame de sangue específico. E assim foi por quase 5 minutos: Marcos Paulo esquecendo o texto, Regina Duarte com ponto e Ítalo com o texto na ponta da língua, querendo trocar velocípede por triciclo, alteração não permitida pelo diretor. Um pedaço da conversa foi cortado. Este: - É isso aí, garoto! E não podemos esquecer que as pesquisas estão avançadas. Temos que ter esperança na descoberta da cura. Aliás, hoje, com a ajuda de aparelhos respiratórios, consegue-se prolongar a vida em pelo menos 10 anos. É o tempo que os cientistas dizem precisar para transformar as pesquisas com células-tronco em tratamento. Não só da distrofia muscular, como de outras doenças. A família de Ítalo não sabe por que a edição da novela solapou a célula-tronco, mas o assunto é recorrente em casa, ainda mais com a proximidade do julgamento pelo STF, previsto para a próxima quarta-feira, da ação direta de inconstitucionalidade questionando o artigo da Lei de Biossegurança que prevê o uso de células embrionárias para pesquisa e terapia. Todos têm esperança imediata na ciência, mesmo porque entoam o mantra dos distróficos anônimos: um dia por vez. O dia de quinta foi especial. No coquetel de abertura da exposição Revolução Genômica, em São Paulo, os convidados puderam ver um trecho curto da história dos Herreros em vídeo. Está no trajeto da mostra que trata dos testes de diagnósticos. Luzia até queria, mas não teve tempo de dizer ao mundo que Ítalo passou em Direito e aguarda uma bolsa para cursar a universidade. "Direito tem tudo a ver comigo, sou ariano, brigo pelo que acho justo", diz. "Só não posso andar, o resto é normal."

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