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Um mundo sem neve nem flores

Nesse tempo em que até as estrelas parecem domesticadas, o clima é um dos últimos animais selvagens em liberdade. Tentamos domá-lo com a técnica. Mas, com a natureza encurralada, o que será da felicidade?

Por Gilles Lapouge
Atualização:
  Foto: CHARLES PLATIAU | Reuters

No início, o aquecimento climático era tímido. Avanços furtivos. Não sabia como se impor. Suas maneiras eram serenas, inefáveis e mais felizes. Colocava claridade nas noites de outono e a neve resplandecia sob o sol. Nas praias, os seios das mulheres brilhavam s de bronzeador. No verão, multidões alegres se precipitavam na imensidão das águas do Trocadéro, em Paris.

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Ocasionalmente, o clima lançava um alerta. Num determinado outono, decidiu que as andorinhas passariam o inverno na França e não na África. No verão seguinte, um grande pedaço de iceberg deixava a Groenlândia, mas não fizemos disso uma grande história. Apenas um momento a se atravessar. É assim, o clima: num mundo escravizado e cujas estrelas estão cada vez mais domesticadas, ele é um dos últimos animais selvagens ainda em liberdade. Faz o que lhe dá na cabeça. É travesso, ama a exceção e prepara surpresas. Sob o Rei Sol, o Castelo de Versalhes era um castelo de gelo, mas, nos séculos seguintes, o termômetro começou a subir.

Contudo, há uma quinzena de anos o calor ganha partes do mercado. Os objetivos da guerra que trava contra nós mudaram. Ele não se contenta mais em nos impor noites sufocantes, mas revolve o baú dos nossos tesouros.

Elevar o grau de álcool do vinho, organizar ondas de calor são efeitos que não bastam mais para ele. O clima investe contra a geografia e até a geologia, rebaixando as montanhas e provocando o desaparecimento dos lagos. E o mais sacrílego: atemoriza nossos filósofos, modificando os quatro elementos que desde Empédocles e Aristóteles sustentam nossas ciências e metafísicas: o ar, o fogo, a terra e a água.

Amo a neve, que é feita de água, e a neve desaparece. Adeus ao branco das coisas, adeus à virgem e imaculada, o cintilante dos cumes. Fim do gelo nas ruas e das batalhas de neve no pátio da escola, do “odor da maçã e da infância de neve”, do ruído da neve que cai.

Nos Alpes, o que se afirma é que a neve diminuirá cerca de 70% daqui a 2070. É verdade que tais observações são incertas. Convém não confundir o volume de neve com a neve que cai, que parece menos afetada, mas de qualquer maneira está em declínio. No passo de Portes, nos Pirineus, nos anos 60 havia 1,50m de neve. Cinquenta anos depois, não passa dos 90 cm.

É importante adicionar duas informações inquietantes: na Groenlândia, as neves se tornaram negras. E a previsão é do fim das neves eternas nos Alpes. O fim das neves eternas! É como se os deuses abandonassem, na ponta dos pés, suas residências.

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O desaparecimento da neve arruinará nossa história. Todo o nosso passado ficará desfigurado. Como retirar da nossa memória o corpo nu de Carlos o Temerário (Carlos I, da Borgonha), cuja metade do corpo foi devorada pelos lobos nas neves sangrentas de Lorraine, em janeiro de 1477? E o que fazer dos soldados sonâmbulos do Grande Exército no caminho do rio Berezina?

“Deixe a neve chegar”, dizia o marechal Kutuzov quando seus generais insistiram para ele atacar os franceses. O marechal era melhor estrategista do que os seus generais. Utilizava, ao lado dos seus velhos canhões, a neve, porque sabia que ela é um dos grandes Manitus da história.

A neve tem outro mérito. Achamos que ela faz desaparecer, ao passo que ela é reveladora. Ela suprime para desvelar. Nas manhãs de neve, abro minha janela e descubro um além-mundo. A cortina silenciosa se abre e percebo um universo mais longínquo que as cataratas do rio Zambeze. Animais desconhecidos, tão serenos quanto os sonhos, deixaram sobre o branco da neve traços de suas asas, suas patas, suas garatujas no quadro branco do nada. Eles me fazem sinal. Jamais os vi. E me dizem que o mundo é mais vasto que o mundo.

Em um livro publicado há alguns anos, propus a criação de um museu da neve. Possuímos museus de todo o tipo, da bicicleta, da faiança, dos escaravelhos, de arte africana Dogon e dos Inuit, mas da neve não temos nada. Como nos consolar com o fato de não podermos jamais admirar uma neve da antiga Babilônia, ou a de David Copperfield, ou mesmo aquela que o profeta Isaías tanto amava?

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Um tal museu permitiria colocar à prova o belo livro de Junichiro Tanizaki, Elogio da Sombra, e compreender enfim porque as neves do Japão, menos brancas que as nossas, são mais belas também porque contêm o ouro do céu, as cores da lua, das cerejas e do infinito. No meu museu, poderíamos enfim admirar as famosas neves da era Kyôwa, que afirmam ser atormentadas por uma melancolia azulada.

Imaginava esse museu da neve como uma fantasia. Não fazia ideia que meio século depois a neve seria um objeto em vias de extinção. Ora, soube agora que um museu da neve, ainda modesto, existe. Foi inaugurado em 2014 na exposição O Duro Desejo de Durar, na comuna francesa de Audièrne. Ele encerra neves que caíram em dezembro de 2010. O responsável não foi buscar neves da Renascença e menos ainda neves do Baixo Império Romano, mas o museu está no bom caminho. Seu criador é um artista plástico, Jean-Pierre Lenoir, que vive em Molles, Auvergne.

Mel amargo. As abelhas estão entre os mais antigos companheiros do homem. Estão encarregadas das nossas flores, nossas folhas e nossos galhos. Fecundam os campos e as florestas. Pintam o mundo. Se desaparecessem, o planeta seria cinza, branco e negro, e muito insípido. Além disso, não teríamos mais nada para comer. Albert Einstein afirmava, não sem exagero, que, se as abelhas morressem, os homens não sobreviveriam mais do que quatro anos.

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Hoje elas vêm desaparecendo. Já nos viram demais. Não as agradamos, de modo nenhum. E elas morrem. Os Estados Unidos formam exércitos de abelhas supletivas que são alugadas para fecundar os prados ou os campos em perigo. Há vinte anos o desastre aumenta, se aprofunda. Milhares de estudos têm sido realizados. A maioria indica os mesmos responsáveis: inseticidas ou pesticidas que privam as abelhas da sua linguagem.

Recentemente, um outro assassino veio se sentar no banco de acusados: o clima. Os zangões selvagens, outro tipo de abelha, são cada vez mais raros. Razão disso? Eles, que fecundam os jardins e os campos abaixo do paralelo 50º, ou seja, da Bélgica, sofrem com o aquecimento global. Por infelicidade, diferentemente de outras espécies mais sagazes, os zangões selvagens não têm ideia de partir para o Norte e morrem de calor.

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No caso das abelhas, acreditamos hoje que uma das causas de sua penúria, além dos inseticidas e pesticidas, também é o calor. O processo da sua morte, porém, não se assemelha à dos zangões selvagens. Com o aquecimento, as primaveras são mais longas e mais quentes. No entanto, essa é a estação do labor para a abelha. A abelha tem 20 a 30 dias de trabalho a mais. Portanto, os caprichos do clima as levam a trabalhar excessivamente, a ponto de se esgotarem.

Graças a Deus ainda restam espécies selvagens que representam 90% do total das abelhas do planeta. Deparei com algumas na Amazônia. As euglossini, especializadas em orquídeas e bromélias, as mamangabas, da tribo Bombini, que preferem as passifloras. Essas abelhas são sedutoras, sem ferrão, costumam ser pequenas, fantasistas, sonhadoras e não muito competentes.

Selvagens, libertárias, anarquistas, rejeitando tanto a ideologia marxista como a do social-liberalismo, desprezando as casernas e os campos de concentração inventados pelas abelhas domésticas, as mamangabas se recusam a compartilhar suas energias. A abelha selvagem é solitária. Ela desdenha o trabalho em grupo. Como estes seres livres podem competir com o imenso exército de abelhas de nossas colmeias comunitárias?

As abelhas selvagens não fabricam toneladas de mel, mas gotas. E depositam estas gotas em potes de cera minúsculos. Esse mel microscópico tem um sabor delicioso e é muito bom no campo da medicina: algumas pessoas se curam num piscar de olhos do abominável Bacillus anthracis, o Anthrax que faz parte do arsenal dos grupos terroristas.

Hoje se afirma que empresários vindos da América do Norte pretendem transformar bilhões de abelhas selvagens em bilhões de abelhas domésticas. Seu intento seria criar escolas de abelhas onde treinadores ou instrutores ensinariam as abelhas solitárias a se reunirem em grupo, como numa “festa de vizinhos”, a sacrificar a liberdade que defendem há 100 milhões de anos e formar colônias, exércitos de operárias dóceis, idiotas e desesperadas, populações escravas, robôs trabalhando na escuridão da colmeia, para o planeta continuar cintilante e fértil.

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Salvar o mel, preservar as cores e as mesclas da natureza são, claro, necessidades e dever de nossas gerações. Mas, para organizar a sobrevivência do mel e da polinização, sermos obrigados a tornar esses seres subversivos e intratáveis que são as abelhas selvagens em operárias anônimas condenadas ao inferno do trabalho perpétuo é, na minha opinião, um dos efeitos mais perversos do aquecimento do clima. Para salvar o mel, seria necessário portanto reduzir à escravidão centenas de comunidades de insetos livres e imaculados.

Paradoxos como este são observados não só no campo das abelhas. No tocante à neve, nas estações de esqui, a escassez de neve obriga a bombardear as pistas com neves artificiais. Esta é a detestável bordoada do aquecimento do clima. Ele nos força a substituir as neves de antanho por neves industriais, neves imaginadas pelos homens e que não existem.

Da mesma maneira, a elevação das temperaturas e também a poluição nos obrigam a colocar uma camisa de força nas espécies raras, nas flores raras, nos animais raros, que resistiram à ordenação, à disciplina, à lógica industrial, ao trabalho forçado e à escravidão. Tal é a sombra hedionda do aquecimento climático e da poluição: salvamos florestas, mas vamos discipliná-las. Salvamos os animais, os leões, os antílopes e os golfinhos, mas vamos encarcerá-los em zoológicos ou em “reservas” repletas de proibições e guardas armados. Às vezes, somos obrigados a ensinar de novo os animais selvagens a serem selvagens. Criamos escolas de selvageria, como criamos escolas para domesticar as abelhas selvagens.

Não critico aqui nem as tentativas de salvar a polinização graças às abelhas selvagens, nem a proteção das plantas e dos animais. Para mitigar a morte das abelhas domésticas, é lógico reduzir as abelhas selvagens à escravidão? Constato apenas que para sobreviver num mundo poluído, violado pelos humanos e cada vez mais quente, as plantas e os animais são obrigados a marchar em fila indiana, como os homens.

O mal do GPS. Quanto ao clima, o trabalho de remanejamento está bem avançado. Começou bem antes do aquecimento. E tem prosseguido desde o início das sociedades, da mesma maneira que a geografia tem a tarefa, desde Anaximandro e Ptolomeu, de ordenar o inesperado das formas da terra do mesmo modo que as palavras há muito tempo foram disciplinadas pelas regras da poesia alexandrina, ou ainda como o caos da História foi reorganizado em períodos, sequências e em lógica para o trabalho dos historiadores.

Os meteorologistas já tornaram a previsão do clima uma ciência exata. Em que se transformou o tempo, o belo tempo, em que o clima era selvagem? Há cinquenta anos os meteorologistas da rádio nos anunciavam céus azuis ou escuros, ao acaso. Hoje, quase nunca se enganam. E o que dizer do GPS, esta invenção mirabolante que nos impede de ceder à atividade mais humana, por mais angustiante e perigosa que seja, mas também a mais magnífica: nos perdermos.

Eu me esforço para não ceder ao pessimismo, mas vejo o avanço de um tempo irracional: para garantir a sobrevivência das abelhas, da neve, da água e mesmo dos ventos, os homens serão condenados a completar a natureza por meio da técnica, do artifício, da indústria, da manufatura.

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E isso não é uma espécie de “ficção climática”. Nos Estados Unidos o Microbotics Lab, da universidade de Harvard, fabricou um drone liliputiano, o RoboBee, teleguiado. Esta abelha de vidro voa, pousa nas flores, mas depois não sabe mais o que fazer. É incapaz de recolher o pólen. Na Polônia, a faculdade de mecânica, energia e aviação produziu uma abelha minúscula, equipada com pequenas escovas capazes de realizar a coleta do pólen. Infelizmente essa maravilha é muito frágil. A menor corrente de ar bloqueia seus mecanismos. Ninguém duvida no entanto que num futuro próximo abelhas forjadas pelo gênio humano conseguirão polinizar.

E então realizaremos estranhos passeios pelos campos: milhões de robôs liliputianos estarão soltos nos nossos bosques e plantações. A cadeia produtiva do mel será restaurada. Mas a natureza, nesse curioso tabuleiro de xadrez, receberá xeque-mate. E num mundo sem neve nem flores, em que se transformará a felicidade? / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

ESTE TEXTO É O DISCURSO DO AUTOR NO "PARLEMENT SENSIBLE", PAINEL DE DEBATES ACERCA DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS PROMOVIDO PELA CASA DE ESCRITORES E LITERATURA, EM PARIS

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